Edição da Homilia do 6º Domingo da Páscoa
Pouco tempo, e o mundo não mais me verá, mas vós me vereis, porque Eu vivo e vós vivereis.
Soa como um poema e ao mesmo tempo como um enigma. O que quer dizer Cristo com estas palavras? O Evangelho de João é cheio dessas expressões musicais e também misteriosas. Mas, no fundo, é simples: Pouco tempo e o mundo não mais me verá – Jesus anunciava a sua morte. Depois: mas vós me vereis - anuncia aí a sua ressurreição, com as inúmeras aparições aos discípulos e, em terceiro lugar: porque eu vivo e vós vivereis – aqui Jesus indica que Ele nos vai dar a participação na sua própria vida de ressuscitado, Ele vai vencer a morte – Eu vivo – e com essa mesma vida Ele nos vificará: e vós vivereis. Então temos aí: morte, ressurreição e vida nova transmitida aos seus.
O acento da liturgia, de hoje até o fim do tempo Pascal (que termina com a festa do Espírito Santo, Pentecostes) é justamente a nossa participação na vitória de Cristo. Não celebramos só a ressurreição de Jesus, a vitória de Jesus, mas celebramos também a nossa vitória através Dele, por meio Dele, n’Ele, bem como a vitória Dele em nós. Celebramos a Páscoa, quer dizer a passagem, de Cristo à vida gloriosa, mas celebramos também a nossa passagem a uma vida nova pela conversão, pela salvação eterna e pela ressurreição dos mortos que virá. Nós participamos desde já da vida do Ressuscitado – é isso o que nós celebramos.
Esta participação nossa na vida do Cristo ressuscitado não é uma maneira bonita de falar simplesmente, não é um modo figurado de ver as coisas; é uma realidade. O apóstolo Paulo, por exemplo, nas suas cartas muitas maneiras e muitas vezes diz coisas como: vós morrestes com Cristo e com Ele ressuscitastes; vós fostes sepultados com Cristo e a vossa vida está escondida com Cristo... Escondida, mas real: existe uma vida nova que se vai manifestar na ressurreição. Então morte e ressurreição da Jesus são duas realidades espirituais que já vão operando em nós. A Páscoa de Cristo vai operando em nós a salvação e a salvação começa pela alma, mas vai transbordar e vai atingir o corpo. Começa pela alma através do perdão dos pecados, através da fé, através da habitação de Deus em nós (o que se chama de inabitação divina: a habitação de Deus em nós), mas vai transbordar do corpo no dia em que a alma, glorificada pela visão de Deus face a face, novamente se reunir à matéria; no dia da ressurreição. A ressurreição é isso: o transbordamento da alma glorificada, ou transbordamento da glória que Deus deu à alma, sobre a matéria, envolvendo-a e transformando-a. Então a salvação começa na alma pela fé, pela habitação divina, pelo perdão dos pecados e terminará, culminará no corpo, no dia da ressurreição gloriosa. É um processo que já começou, está em ação dentro de nós. Nós não devemos atrapalhar, mas, na medida do possível, ajudar.
Agora: como se dá esta nossa participação na ressurreição de Cristo? Ou, melhor dizendo, qual é o elo que nos une ao Cristo Ressuscitado para que nós possamos receber tudo isso? O elo, Jesus nos responde no Evangelho de hoje: Eu rogarei ao Pai e Ele vos enviará um outro Defensor, o Espírito da Verdade, eis aí, o Espírito Santo é o elo que nos une ao Cristo ressuscitado e nos transmite a vida nova d’Ele, a força da sua morte e, mais ainda, a força da sua ressurreição.
A palavra que Jesus usa nesse Evangelho para designar o Espírito Santo, “Defensor”, conforme está traduzido aí, é uma palavra um pouquinho diferente e, em algumas traduções da Bíblia ela aparece quase como no original (só aportuguesada). Essa palavra é importante; quero explicá-la. O que aí aparece como “Defensor” é “Paráclito”. Eu vos enviarei outro Paráclito. Às vezes também é traduzido como “Advogado”. A palavra “Paráclito” vem da língua do Novo Testamento, o grego, e é formada pela combinação de “pará” e “klétos”. “Pará” é junto de, ao lado de; “kletos” é chamado, convocado. Então o que é um paráclito? É alguém que é chamado para estar junto de mim ou de você, em seu benefício, em sua defesa. A tradução exata em latim é “advocatus”. O que faz o advogado é estar junto do réu ou da parte interessada, em suma, para defender os seus direitos, para protegê-lo, para falar por ele, e assim por diante. Então o Espírito Santo é o “parákletos”, é o “adovocatus”, é o defensor, é aquele que está junto de nós. Mas Jesus diz: eu vos enviarei um outro Paráclito ou seja , Ele próprio é também Paráclito.
Ele é o Paráclito que envia outro Paráclito da parte do Pai.
Vejam como a Trindade entra, em cheio no mistério pascal. Se a Páscoa é o cerne de tudo, no coração da Páscoa está o mistério da Trindade Santa.
Jesus – vamos nos figurar um ciclo rapadamente – [movimento descendente:] Jesus o Filho eterno, é enviado e nasce da virgem Maria, morre na cruz, [movimento ascendente:] ressuscita, sobe aos céus, [novo movimento descendente:] envia o Espírito Santo para envolver e vivificar os seus e [novo e conclusivo movimento ascendente:] levá-los ao Pai - assim se fecha o ciclo. O Espírito Santo é fundamental, porque senão a operação é abortada: Jesus ressuscita e... Acabou! Não adiantaria de nada, de nada teria servido aos pecadores. Há que continuar: é preciso que Ele envie o Elo que nos transmite a sua vida nova e o perdão dos pecados: o Espírito Santo.
Jesus vai inaugurar um modo mais perfeito de estar presente aos seus. O Paráclito, diz Ele, permanece junto de vós e estará dentro de vós. Então, o Espírito Santo não estava dentro dos discípulos ainda, estava somente junto deles. Mas passaria a estar dentro deles depois de Jesus ressuscitar e subir aos céus. É um modo mais perfeito de presença, porque Jesus também estará presente, visto que as Pessoas da Trindade, embora distintas: Pai, Filho, Espírito Santo, não se separam. Vindo o Espírito Santo, Jesus vem com Ele e o Pai também. Então o próprio Jesus diz: Não vos deixarei órfãos, eu virei a vós. Mediante a ação do Espírito Santo, também Ele estará presente. Eu virei a vós... Não só para estar junto de vós; virei para estar dentro de vós. Vejam o que segue: e naquele dia, então, sabereis que Eu estou no meu Pai, vós em mim e eu em vós.
Outro poema enigmático: Eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós. O que é isso? Estou no Pai pela mesma natureza divina que eu tenho e recebi d’Ele, enquanto seu o Filho eterno. Eu estou no Pai porque sou Deus com o Pai. Ele é a fonte da qual esse rio (o Filho) procede: Jesus, o Filho, é o rio eterno que procede de uma fonte eterna, o Pai. Eu estou no Pai.
Vós em mim. Como é que nós estamos em Jesus? Estranho? Nós em Jesus... Como é que nós estamos nele? Através da natureza humana, que Ele assumiu nascendo da virgem Maria. Ele tem a nossa carne, o nosso sangue, Ele é um homem verdadeiro, completo, nascido de uma mulher. Através da natureza humana que Ele assumiu no ventre da Virgem, nós todos estamos n’Ele e Ele em nós? Como pode Ele estar em nós? Pelo dom do Espírito Santo que enviou da parte do Pai. Aí, então, meus irmãos, abre-se um horizonte dentro do qual, revela todo seu sentido a narrativa da primeira leitura: os Apóstolos saem de Jerusalém, que era o foco central, o coração da Igreja, para verificar numa terra próxima, a Samaria, o que tinham ouvido dizer. A saber, que o diácono Felipe (fugido de Jerusalém por causa da perseguição, como muitos outros) anunciara o Evangelho de Cristo ressuscitado aos samaritanos, muitos dos quais receberam a fé e foram batizados. Os Apóstolos ouviram dizer e foram verificar e também confirmar, na qualidade de primeiros responsáveis, a pertença desses novos membros à Igreja. Chegando lá, impuseram as mãos aos novos fiéis e eles receberam o Espírito Santo. Temos aqui, provavelmente, uma alusão ao sacramento da Crisma, porque já tinham sido batizados. É verdade que o Espírito Santo é dado também no Batismo, mas há, digamos assim, um robustecimento do dom do Espírito Santo no sacramento da Crisma- seria um outro discurso que a gente não tem tempo de fazer agora, evidentemente... Os apóstolos foram visitar aqueles recém batizados e os confirmaram na fé (sacramento da Confirmação ou Crisma).
Nós recebemos o Espírito Santo no Batismo e um transbordamento do Espírito Santo na Crisma para sermos discípulos de Jesus e continuadores da sua missão salvadora, testemunhas do Evangelho, esse é o motivo, esse é o objetivo. Hoje somos os continuadores da missão de Jesus. Por meio de nós Ele quer salvar o mundo à nossa volta. E Ele o faz de maneira misteriosa. Nem sempre o percebemos, mas na eternidade nós veremos. Através de nós, Ele quer salvar e salva.
A nós, portanto animados e fortalecidos Pelo Espírito Santo e pela Eucaristia, que é o próprio Jesus, cabe dar testemunho e fazer aquilo que o apóstolo Pedro nos dizia na segunda leitura: Santificai, ou seja, glorificai, em vossos corações o Senhor Jesus e estai sempre prontos a dar razões de vossa esperança a todo aquele vo-la pedir. Nós temos que estar prontos para dizer em que e porque acreditamos. Por que resolvemos pertencer a Cristo As pessoas esperam de nós – aqui faço um parêntese, citando ainda o apóstolo Pedro. Ele diz: Crescei na graça e no conhecimento do Senhor Jesus Cristo. Percebam que se trata de uma obrigação de consciência. Cada um dentro das suas possibilidades e das suas limitações, é uma obrigação buscar crescer no conhecimento da própria fé. Não simplesmente ficar dizendo (como quando a gente não sabe o que dizer): “Ah! Eu sou católico. Não vem com essa história”. Bem, é uma defesa em caso extremo de desespero: se você não tem argumento, essa vale, mas, por favor, não fique nisso... Esse tipo de resposta é provisória. Vá atrás do argumento. Se aquela chateação, aquela dúvida, aquela acusação bate sempre à sua porta, você não tem o direito de não ter a resposta para si e para os outros, Procure! Leia! Interrogue! Converse! Vá atrás! Estude! Faça alguma coisa! Não fique parado! Não engavete a dúvida como se ela não existisse. Não engavete as minhocas que colocaram na sua cabeça porque elas vão se reproduzir e, num momento qualquer de crise, vão comer o seu cérebro e a sua alma também. As dúvidas de fé que você acumulou por inércia virão à tona e cobrarão caro...
Então estai sempre prontos a dar razões da vossa esperança a todo aquele que vo-lo pedir, perguntar, Ora, há muitas maneiras de dar razões da nossa esperança: eu posso falar, eu devo falar, sobretudo quando solicitado ou quando há espaço para isso. Também posso criar o espaço para isso. Eu já vi gente católica, de Missa dominical, de comunhão, de pastoral, que na hora de agir, de propagar o Evangelho, se encolhe. Abriu-se uma brecha, uma oportunidade de anunciar Jesus ressuscitado. Ali ela podia introduzir Jesus Cristo, mas não o faz – perde a oportunidade. A ‘concorrência’ não perde oportunidade; cria oportunidades aliás. Nem sempre honestamente, enquanto nós perdemos oportunidades, nos encolhemos. Por quê? Porque não estamos preparados para dar razões de nossa fé. E porque não estamos? Porque não buscamos. E porque não buscamos? Porque somos comodistas, preguiçosos, desinteressados das coisas de Deus.
É uma obrigação, repito, na medida das suas possibilidades. Quem sabe há um programa de televisão ou de rádio que ajude a entender a algumas coisas da nossa fé. Você pode procurar alguma coisa para ler. A internet tem de tudo, de bom e de ruim – basta saber usar. Você tem o acesso à Igreja; há pessoas que podem ajudá-lo, os sacerdotes, sobretudo. Então por que ficar parado? Portanto: criar oportunidade para dar testemunho, para falar, mas não só falar. Viver aquilo que se fala tanto quanto possível, esforçar-nos nesse sentido, porque – e aqui cito o Papa Paulo VI (quem se lembra dele?) –: “o mundo de hoje houve mais as testemunhas do que os mestres. E se ouve os mestres é por terem sido testemunhas”. Queremos ser ouvidos? Sejamos testemunhas. Para isto nos foi dado o Espírito Santo, para isso recebemos a Eucaristia.
Não vamos frustrar o objetivo de Deus recebendo o Espírito Santo e o corpo de Cristo para deixar por isso mesmo. Não vamos “abortar a operação”.
Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 29/05/2011
Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 8,5-8.14-17)
Salmo: [Sl 65(66)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Pedro ( 1Pd 3,15-18)
Evangelho: João (Jo 14,15-21)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com
Maravilhosa homilia, Pe Sérgio! Tantas coisas aprendi aqui. Inclusive que não sei tanto assim mas que devo procurar saber mais. Que Deus tem uma obra perfeita com a encarnação de Jesus, mas só pode ser perfeita em mim se eu for capaz de absorvê-la por completo. Com a ajuda do Espírito, em primeiro lugar e com meu empenho em aprofundar mais e responder minhas dúvidas com estudos e leituras. Obrigada pela sua palavra , sua leitura da palavra de Deus para nós.
ResponderExcluirIsabel Boisseleau