Transcrição da Homilia 34º domingo do Tempo Comum
Esta solenidade “Cristo Rei” conclui aquele trecho do nosso Calendário Litúrgico chamado Tempo Comum, em que a Igreja vinha se revestindo de verde (hoje mudamos para branco ou ouro), verde que é a cor dos campos cultivados. Isso nos lembra que durante o Tempo Comum nós observávamos, ou melhor, seguíamos os passos de Jesus que, qual divino Semeador, ia semeando a Palavra, pelas coisas que dizia, pelas coisas que fazia, a Palavra que vai frutificar para o Reino de Deus.
Tendo acompanhado, no Tempo Comum, a vida pública de Jesus, seus milagres, seus ditos, seus gestos, e assim por diante, desembocamos nesta festa de Cristo Rei que é um apanhado de tudo isso, a conclusão lógica e natural, pois tudo o que Jesus fez e que ainda está fazendo por meio da sua Igreja – que somos nós – no mundo; tudo o que Ele fez, faz e fará vai concluir-se no seu Reino universal.
Esse Reino já se está implantando, começa nos nossos corações, nos corações daqueles que crêem e têm em si o Cristo; e se expande a partir daí.
Hoje, na Epístola, o Apóstolo Paulo dá a Jesus alguns títulos muito importantes: em primeiro lugar ele diz que Jesus é a Imagem do Deus invisível, depois Primogênito de toda a criação e ainda Primogênito dentre os mortos e Cabeça da Igreja.
Vejamos brevemente estes títulos régios de Cristo.
Imagem do Deus invisível... Nós sabemos que Deus é eterno. Tem gente que pensa que eternidade é simplesmente um “não-ter-fim”. Mas eternidade é bem mais do que isso. Eternidade não é só ausência de um fim, mas também ausência de princípio. Sim! Por exemplo, a alma humana não tem fim, mas tem começo, Deus a cria num dado momento. O anjo não tem fim, mas tem começo, pois Deus o criou, antes do que, ele não existia. O tempo, de certa maneira, não tem fim, mas teve um começo. E antes do tempo, o que havia? Eternidade sem princípio: Deus. Deus é o sem-princípio e o sem-fim. É o único existente sem ter começado. Quem precisa começar é a criatura. O Perfeito não começa, Ele simplesmente existe. É difícil para nós porque nós estamos mergulhados no tempo desde que nascemos e a nossa cabeça só funciona dentro dessa estrutura espaço-temporal, mas o Perfeito existe sem ter começado.
Deus, no Antigo Testamento, revela seu nome quando Moisés pergunta, e esse nome, é um nome curioso, mas que nos ajuda a entender isso; Deus diz: Meu nome é: Eu sou... simplesmente. Eu não era, eu não serei, simplesmente sou.
Ora, este eterno “Eu sou” tem diante de si, desde sempre, um reflexo vivo da sua face gloriosa. Nosso reflexo no espelho não é vivo, não tem vida própria, não interage conosco. Mas Deus desde toda eternidade está como que diante de um espelho, o espelho da sua própria sabedoria e esse espelho reflete a sua face. O reflexo de Deus é vivo ele se chama “Filho”. É a segunda pessoa da Trindade. Desde a eternidade, portanto, temos o Pai e seu Reflexo vivo, que é o Filho, e o Amor que une os dois , e que é um amor vivo, o Espírito Santo.
O Filho, então, é a imagem do Deus invisível porque Ele é o reflexo do Pai, reflexo vivo do Pai que veio ao mundo, nasceu da Virgem Maria e se fez homem. A partir de então, Ele, que era invisível, fez-se visível, tornando-se para nós a Imagem visível do Deus invisível. O Reflexo do Pai assumiu a nossa carne, traduziu na carne aquilo que antes os olhos não podiam ver: a face de Deus.
Ele é também chamado de Primogênito da Criação. Por quê? Consideremos tudo que foi criado, todo esse universo maravilhoso que nós vemos e a parte mais maravilhosa ainda, que nós não vemos, que é o mundo espiritual, o mundo dos anjos, da alma humana e mesmo as coisas ocultas desse universo material, toda essa maravilha é uma obra prima de Deus.
Para criar uma obra prima o artista se inspira em algo ou em alguém. Para fazer a sua música, sua pintura, sua obra arquitetônica, seu monumento, o artista se inspira num grande amor, o artista se inspira numa paisagem deslumbrante, num pôr de sol, quem sabe, inspira-se nas coisas que estão diante dele e que lhe tocam o coração. Ora, o que foi que inspirou Deus a fazer tudo quanto fez? A criar essas maravilhas todas – e você é uma delas –, o que foi que tocou e moveu o coração de Deus? Aquele que Ele tinha diante desde sempre, o seu Filho eterno. O modelo e inspiração do Pai Eterno para criar todas as coisas foi seu Filho, unigênito, a sua imagem viva.
Toda a criação é um poema do Pai dedicado ao Filho. É uma música, é uma escultura, um monumento do Pai dedicado ao Filho no abraço do Espírito Santo. Por isso é que São Paulo diz que todas as coisas foram feitas por meio Dele e para Ele.
Eu, você, e toda a criação, somos um presente do Pai ao seu Filho. E é Jesus quem o diz: todo aquele que o Pai me dá, vem a mim e Eu não o lançarei fora.
Ele é também chamado Cabeça da Igreja. Por quê? É o apóstolo Paulo quem também nos ensina que a Igreja é um corpo. Nós não somos uma ONG, nós não somos um clube de simpatizantes de Jesus, nós não somos um grupo que se reúne porque pensa parecido e gosta da música do coral (e até gostamos... está bem bonita hoje, muito boa). Mas não é isso. Isso é pouco demais.
Nós somos um corpo vivo, dos quais um é membro do outro e todos são membros de Cristo. Existe uma conexão verdadeira e profunda entre nós; é um corpo vivo, um organismo espiritual. O que eu faço de bem e de mal afeta os demais. Eu posso oferecer a minha oração, meu sacrifício e tantas coisas por pessoas que eu não conheço, talvez só vá conhecer no céu. É um corpo onde um membro trabalha em favor de todos os outros e todos trabalham em favor daquele; e quando um sofre todos sofrem, mesmo que não se saiba. E Jesus é a cabeça desse corpo vivo. Ele é o Rei desse corpo. Tendo recebido o Espírito Santo que jorra para nós da morte e ressurreição de Jesus pelo sacramento do Batismo, tornamo-nos uma só coisa entre nós e com Ele.
Ele também é o Primogênito dos mortos, porque foi o primeiro a ressuscitar gloriosamente e é dele que virá também a nossa ressurreição, da qual já temos o penhor na Eucaristia, fármaco de imortalidade, segundo os antigos: recebendo o Ressuscitado, alimentamo-nos de ressurreição.
Observem quanta riqueza nesses títulos que São Paulo aplica a Jesus, quanta profundidade, que oceano de sabedoria e que maravilhas isso tudo encerra.
Mas também temos nesta Liturgia de hoje um paralelo interessante entre Jesus Cristo e o rei David.
Lendo a genealogia de Cristo no Evangelho de Lucas e no Evangelho de Mateus, verifica-se que Jesus é descendente do rei David. Só que, na época de Jesus, a dinastia, ou seja, a família real de David, já não governava mais em Israel. Eles estavam misturados ao povo, tinham perdido o trono e a ‘pose’ há muito tempo. Já reinavam outros em seu lugar e, ainda por cima os romanos, dominando os novos senhores.
Mas havia uma profecia antiga, da época de David, que dizia que um descendente de David reinaria para sempre em Israel e que o trono nunca lhe seria tirado. As pessoas se perguntavam, na época de Jesus e antes um pouco, onde estava a profecia: “será que Deus se esqueceu de nós?”
Quando o anjo Gabriel anuncia a Maria que ela vai ser mãe, diz-lhe as seguintes palavras: Ele (o filho que lhe iria nascer) herdará o trono de David, seu pai, e o seu reino não terá fim. Aí, portanto, se cumpre a antiga profecia.
A Primeira Leitura fala da entrada triunfal de David na cidade de Hebron, recebido pelos seus compatriotas depois da vitória numa batalha das tantas que ele travou. Logo em seguida ele é ungido e coroado rei em Hebron.
O Evangelho oferece um paralelo e um contraste com este relato: Jesus é o novo David, que todos esperavam, todos desejavam, mas que não souberam reconhecer.
David entra em Hebron com festa, Jesus também, quando entrou pela última vez em Jerusalém, pouco antes da sua morte na cruz, foi acolhido com enorme festa e grande triunfo. Todo o povo o aclamou “Filho de David”. É a cena do o domingo de ramos – nós temos bem na memória os fatos: estendiam os mantos pelo chão, faziam festa com ramos de árvore, aclamavam Jesus e o bendiziam como “aquele que vem em nome do Senhor”.
Mas logo em seguida, poucos depois, vendo que Jesus não correspondia bem à imagem do rei-messias que eles tinham em mente, e instigados pelos sumo sacerdotes e pelos opositores de Jesus, vão clamar diante de Pilatos: “Crucifica, crucifica!”
Não obstante, o paralelo com o rei David não acabou. David entrou festivamente, Jesus entrou festivamente. Então David foi ungido rei e coroado e Jesus também... na cruz: ungido no próprio sangue e coroado de espinhos.
E o paralelo ainda não acabou, porque Jesus vai ressuscitar e, tendo ressuscitado, Ele recebe, como dirá o Apóstolo, o nome que está acima de todo o nome, diante do qual se dobram os joelhos, no céu, na terra e no inferno. Um nome ao qual ninguém pode resistir: os anjos se curvam diante dele, os homens também, e até o demônio. Ninguém pode resistir, Ele é Aquele que o Apocalipse chama de Reis dos reis e Senhor dos senhores.
Temos que concluir... E o que dizer?
Quem quer fazer parte desse Reino, que a Liturgia de hoje chama de Reino da verdade e da vida, Reino da santidade e da graça, Reino da justiça, do amor e da paz? [cf. prefácio de Cristo Rei] Quem não quereria fazer parte deste reino?
Eu quero, e creio que você também. Mas como é que a gente faz para ganhar a cidadania desse Reino? Não há que se preocupar: essa cidadania já lhe foi concedida no Batismo. A partir de então, você é o que Paulo chamaria de cidadão do Céu. Se eu sou cidadão do Céu, então nesta terra eu sou um peregrino. Muita gente que vive aqui como se isso fosse definitivo, como se estivesse na sua pátria, no seu lugar. mas depois, inevitavelmente, verificará que não é bem assim e não saberá o que fazer diante das perdas desse mundo, principalmente diante da própria morte, porque estava com uma idéia errada. Sua casa não é aqui, minha casa não é aqui; nós somos cidadãos do Céu.
Portanto o reino de Deus não começa quando se morre, não... começa agora. Quem é o cidadão do reino de Deus, quem é o súdito de Cristo Rei? É aquele que deixa Jesus reinar em sua vida.
Essa vida é como a situação daqueles ladrões crucificados ao lado de Cristo. Vimos que um blasfemava e o outro O defendia, e pediu: Senhor lembra-te de mim quando estiveres em teu reinado. Estamos todos crucificados. Essa vida é um momento de crucifixão para todos os homens, até para os que parecem mais felizes (e às vezes são os mais infelizes). A diferença está na maneira como vivemos essa cruz: ou blasfemando ou entregando-nos ao Senhor, aceitando ser uma só coisa com Ele, consentindo em ser crucificados a seu lado e dizendo-Lhe: Senhor lembra-te de mim quando estiveres em teu reinado.
Minha cruz pode me puxar para baixo – e bem baixo – ou pode me levar para o Céu, dependendo de como eu viva esse instante. Posso ser crucificado longe de Cristo, sem querer saber d’Ele, ou posso viver a minha cruz por Cristo, com Cristo e em Cristo.
Eu crucificado com Cristo, eu crucificado por Cristo, eu crucificado em Cristo, eis o que faz a diferença. O apostolo Paulo, de novo, vem em nossa ajuda e conclui: se com Ele suportarmos, com Ele reinaremos – se com Ele sustentarmos a luta, participaremos de sua mesma glória.
Tudo isso já começa agora, meus irmãos. Muitos de nós vamos, daqui a pouco, nos alimentar do próprio Cristo na Eucaristia. Ele, o Rei que não apenas põe a mesa para os servos, mas se faz Ele próprio nossa refeição.Assim Ele exerce a sua realeza. Para Ele, reinar é servir-nos. Para nós, servi-lo é reinar.
Proferida e revisada pelo padre Sérgio Muniz – Botafogo em 21/10/2010
Liturgia da Palavra:
Primeira Leitura: Segundo Livro de Samuel (2Sm 5,1-3)
Salmo [Sl 121(122)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Colossenses (Cl 1,12-26)
Evangelho: (Lc 23,35-43)
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