sábado, 13 de novembro de 2010

Transcrição da homilia do 30º domingo do Tempo Comum

Ouvimos que “Jesus contou esta parábola para os que confiavam na própria justiça”, ou seja, nas próprias virtudes, no próprio merecimento e desprezavam os demais.
Merecimento... podíamos pensar um pouco sobre isso hoje. Às vezes as pessoas dizem com uma certa ingenuidade – imaginando que seja um grande ato de humildade: “Meu Deus, se eu merecer me dê... se eu merecer, Deus me dará”.
Retire isso da sua oração, pelo amor de Deus, corte essa parte...
“Se eu merecer”? Nós merecemos bem pouco, para não dizer abaixo de nada. Não temos mérito, propriamente dito, diante de Deus. Nós já vamos entender porquê. Existe, sim, um mérito secundário diante de Deus, um mérito por modo de falar, mas se formos usar a linguagem no sentido estrito, não temos mérito diante de Deus.
Podemos ter demérito, isso sim. Também vamos entender porquê. O nosso mérito é relativo, não absoluto; é secundário, como dizia, e a razão é que todo o bem que nós podemos fazer, só o podemos fazer porque Deus nos dá a graça de fazer.
Quem lhe deu a inteligência para entender o que é bom e distinguir o bem do mal, foi Deus; quem lhe deu uma índole inclinada para o bem (esperando que seja o nosso caso) foi Deus; quem lhe deu o desejo do bem quem colocou isso no seu coração, foi Deus; quem lhe deu forças para realizar algum bem; quem lhe deu meios materiais ou espirituais para realizar algum bem, foi Deus; quem lhe deu a inspiração para fazer o bem, foi Deus.
Onde está o mérito? Existe um pequeno mérito, para não dizer que não existe, o qual, no entanto, é secundário. E consiste nisso: eu aceitei tudo isso da mão de Deus e Lhe disse sim. Mas até o meu sim a Deus quando Ele me inspira, me dá forças, me dá entendimento para fazer o bem, até o meu sim a Deus, minha correspondência, também é graça, ou seja, é ajudado pela mão de Deus. Sem essa ajuda da mão de Deus nem esse sim, eu poderia dar. Portanto existe um mérito muito relativo, secundário, derivado da graça de Deus.
Com a culpa é diferente... A culpa é nossa mesmo, não de Deus. O mérito é de Deus em nós, mas a culpa é só nossa. O que, que eu tenho de próprio? O que, que eu tenho de mim mesmo? Não tenho de mim mesmo a minha inteligência porque a recebi gratuitamente, não tenho de mim mesmo as minhas forças físicas e espirituais, não tenho de mim mesmo os meus sentimentos bons, pois tudo isso é dom de Deus, tudo que há de bom em mim é dom de Deus. Então eu não sou origem de nada do que tenho de bom.
O que é que tenho de meu, só meu? Meu pecado. Isso não vem de Deus, só isso não vem de Deus.
Por isso erra aquele que confia na própria justiça ou nos próprios méritos, pois está se escorando numa coisa que não é sua, mas de Deus.
E temos que confiar então na bondade de Deus, não na nossa, porque até a nossa deriva da d’Ele. Se existir alguma bondade, ela deriva de Deus. Deus me fará o bem porque não porque eu sou bom, mas porque Ele é bom. Apesar disso, é claro que eu devo procurar corresponder da melhor maneira possível, não há dúvidas.
Também não vamos cair no extremo: “se é assim... vamos pecar”. Absolutamente! É uma questão de bom senso, evidentemente. Pois se o mérito humano é derivado, secundário, o demérito, ou seja, a culpa é toda nossa. Quando ela existe, é só nossa.
Isto é um convite à humildade e a humildade também é muito mal entendida, como muitas palavras são mal entendidas a começar de “amor”. O amor é um dos conceitos mais mal entendidos da atualidade e não sei quando vai voltar a ser melhor entendido.
A tudo chamam de amor. Até o contrário de amor é chamado de amor muitas vezes. E há muitas outras palavras mal entendidas, como “liberdade”, “justiça”, “misericórdia” etc. e uma delas é “humildade”. Pensam que humildade seja aquela coisa melosa de virar a cabeça de lado e falar frouxo ou depreciar as próprias qualidades ou então de se achar abaixo do que fato se é, ou esconder as próprias qualidades e assim por diante.
Isso não é humildade.
A humildade é sinônimo do reconhecimento da verdade a respeito de nós mesmos. Seria uma boa definição. A humildade é a verdade que reconheço a respeito de mim; é a adequação da imagem que eu tenho de mim mesmo à realidade, ou seja, àquilo que Deus vê, porque nós temos a tendência a ter uma imagem de nós mesmos muito superior (ou muito inferior, o que também é um problema) ao que de fato somos na realidade.
É preciso regular esta imagem que tenho de mim, pois todo mundo tem uma imagem de si, todo mundo se vê de alguma maneira. É preciso regulá-la para que ela chegue o mais perto possível da realidade, que normalmente está muito longe do que eu penso de mim e também o que os outros pensam de mim. A realidade é o que Deus vê, e que Deus pensa de mim, essa é a realidade. Eu devo procurar chegar perto disso... e nisso consiste a humildade.
Trata-se de procurar ter uma visão objetiva, real não fantasiosa de si mesmo. É verdade que essa visão realista sobre si mesmo geralmente chega mais perto da oração do publicano: Senhor, tem piedade de mim porque sou pecador do que da oração do fariseu: obrigado, Senhor, porque sou melhor que todo mundo.
Quando nós começamos a ter uma visão realista sobre o que de fato somos, sem máscaras, sem véus, ‘dando o nome aos bois’ que habitam o pasto do nosso coração, aí nós acabamos , como se diz, ‘’baixando a bola, inevitavelmente. Isso é bom, mas não se realiza de modo artificial. Deve ser uma conseqüência natural do autoconhecimento.
A humildade vai se exercer de duas maneiras principalmente:
Primeiro, no reconhecimento das próprias qualidades, sim! E, segundo, no reconhecimento dos próprios pecados.
Reconhecimento das próprias qualidades: já dissemos que humildade não é fingir que eu não sei fazer o que faço bem, não é fingir que sou um zero à esquerda, porque na verdade não sou, visto que todos temos qualidades.
Eu devo reconhecer as qualidades que há em mim, não devo escondê-las. Devo colocar a serviço dos outros, mas – aqui está coisa importante – não devo atribuir a mim mesmo a glória por essas qualidades. Não devo agir como se fosse eu o dono ou responsável pela existência delas, mas, ao reconhecer essas qualidades que há em mim e ao colocá-las ao serviço do próximo, portanto ao deixá-las aparecer (porque elas existem para aparecer, para ajudar os outros), atribuir a Deus a glória por aquelas capacidades. Se alguém fala bem, se alguém cozinha bem, se alguém é um excelente administrador, se alguém canta bem e assim por diante, não deve se orgulhar disto, não deve subir sobre este pedestal, porque essa glória não lhe pertence, pertence a Deus. Quando alguém elogiar: mas que beleza, como você faz bem isso ou aquilo... Bom... Sorria, agradeça com simplicidade, e no seu coração diga: “Senhor este louvor que eu recebi não é meu é teu, a Ti eu dou a glória, nesse momento. Eu remeto a Ti isso que agora recebi”; ou, no dizer do Salmo 114: não a nós Senhor, não a nós, ó, Senhor; ao vosso nome, porém, seja a glória. Como diz aquele provérbio árabe que já citei algumas vezes e vou citar de novo: “com elogio se faz a mesma coisa que se faz com o perfume: a gente cheira, mas não engole”. Porque o elogio é para Deus, não para você. Se engolir, já viu... não vai fazer bem...
E quanto ao reconhecimento dos próprios pecados? Notemos que, no início da Missa, a Igreja nos dirige um convite: reconheçamos nossos pecados para participarmos dignamente desta Eucaristia. Ora reconhecer os próprios pecados é condição necessária, absolutamente necessária para receber a salvação.
Jesus disse: eu não vim para os justos, mas para os pecadores. O médico veio para o doente não para quem tem saúde. O doente que nunca admite a própria doença, este não vai ao médico, não se trata, não fica curado. Será ele o grande prejudicado. Se eu não vejo pecado em mim, não foi para mim que Jesus veio ou, no dizer da primeira carta de São João (capítulo I, versículo 10): se dizemos que não temos pecado, fazemos de Deus um mentiroso. Claro... se Deus diz que temos pecado e nós dizemos que não temos, dizemos que Ele está mentindo. Fazemos dele um mentiroso. E isso é grave!
E que dizer de alguém que chega para confessar – Ih... é tão freqüente! – e diz assim: “padre eu não confesso há um ano, ou há dois anos, há dez anos, mas eu não sei o que vou dizer, porque nesse tempo todo eu não matei, eu não roubei, não fiz mal a ninguém”.
Meus queridos, os mandamentos são dez, e em cada um dos dez nós podemos pecar por pensamentos, palavras, atos e omissões. Já temos aí quarenta modalidades, para começar a conversa... Então nós somos muito superficiais; a Bíblia diz que o justo peca sete vezes ao dia; o justo, o santo, o amigo de Deus, por inadvertência, às vezes, por fraqueza, por nervosismo, por ignorância, nem sempre por maldade, peca sete vezes ao dia...
Faria tão bem se nós começássemos a incorporar no nosso hábito espiritual, um exame de consciência diário, bem feito, de noite, antes de pegar no sono, mas não assim ‘nas últimas’, porque você dorme antes de terminar. Um exame de consciência bem feito de como foi aquele dia diante de Deus; o que não foi bem e poderia ter sido melhor, o que fiz ou deixei de fazer, o que era necessário ser feito e assim por diante. Pedir perdão sinceramente ao Senhor, fazer como o publicano ao terminar o dia porque aqui está: reconhecer os próprios pecados, olhar, olhar dentro do coração, procurar, identificar e admitir, olha que trabalho, olhar atentamente, procurar, identificar... ao achar, dar-lhe o nome: isso é isso... admitir. Senhor tem piedade de mim porque sou um pecador, quero mudar, amanhã vou fazer diferente, ajuda-me com tua graça. Cada dia! E quem faz isso todo dia não vai chegar depois de um ano, dois anos para dizer: “não sei o que dizer”, na hora de se confessar. Pelo contrário: vai sentir necessidade de se confessar mais frequentemente.
Esses meninos que ajudam à Missa aqui estão habituados a se confessar uma vez por mês em média e eu tenho a relação com os nomes e a freqüência à Confissão; é condição para permanecer no grupo. Eles sempre têm o que dizer. Quanto a vocês, eu não sei...
Preciso fazer esse trabalho: olhar, enxergar, dar nome e admitir e dizer diante de Deus: Senhor tem piedade de mim porque sou pecador porque esse é o caminho da salvação e não há outro: o reconhecimento da própria miséria. A recompensa por tudo isso está dita na profecia de hoje (Primeira Leitura) onde ouvimos a oração do humilde penetra as nuvens. Se não houver humildade, ela pára antes de chegar no trono de Deus ou, dependendo do peso do orgulho, nem sobe...

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 24/10/2010
Leituras da semana:

Primeira leitura: Livro do Eclesiástico (Eclo 35,15b-17. 20-22a)
Salmo: [Sl 33(34)]
Segunda Leitura: Segunda carta de São Paulo a Timóteo (2Tm 4,6-8. 16-18)
Evangelho: (Lc18, 9-14)

Nenhum comentário:

Postar um comentário