Transcrição da Homilia do 2º Domingo da Quaresma
Jesus traz consigo um grande segredo... Que vai sendo revelado aos poucos.
Depois que os Apóstolos pregaram o Evangelho, depois que a Igreja cresceu no mundo e chegou até aos nossos dias, depois da ressurreição de Jesus e tudo mais, nós sabemos - desde o nosso catecismo - que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Verdadeiro homem porque é nascido da Virgem Maria e verdadeiro Deus porque Filho eterno do Pai, segunda Pessoa da Trindade.
Mas não pensem que Jesus chegou, se aproximou dos Apóstolos e logo se identificou desta maneira, até porque seria absolutamente inaceitável para eles. Jesus foi revelando aos poucos quem Ele era e a revelação total se dá na ressurreição, nas aparições posteriores à ressurreição. Hoje, contudo, neste passo do Evangelho que está um pouco antes de sua paixão e morte, Jesus mostra algo de identidade oculta aos três discípulos, Pedro Tiago e João que Ele conduz consigo ao cume da montanha.
A Transfiguração, a metamorfose luminosa de Cristo, é a manifestação do que Ele tinha dentro de Si. Todos viam a sua humanidade, mas nesse dia os Apóstolos viram, como que por um buraco de fechadura, um pouco da sua Glória Divina, sua Divindade.
A Igreja coloca esse Evangelho na Quaresma para convidar-nos a uma metamorfose luminosa, a uma transfiguração. Devemos deixar que a luz de Deus em nós brilhe. Jesus tem essa luz como própria por ser Deus com o Pai e o Espírito Santo; nós a temos como colocada em nós, no dia do nosso Batismo. Jesus é como o sol e as estrelas, que têm luz própria. Nós devemos refletir essa luz como a lua faz e os outros planetas também, pois é preciso que o mundo veja a Luz de Cristo em nós.
Eu trago para vocês o exemplo de um santo da Igreja Ortodoxa Russa, que ilustra muito bem esta nossa meditação, para vocês entenderem que a transfiguração não é só de Jesus, mas também nossa; ou seja, nós precisamos nos transfigurar por Cristo, com Cristo e em Cristo.
Trata-se de um santo que viveu no século XVIII, S. Serafim de Sarov.
Brevemente alguns traços biográficos.
Aos dezoito anos o jovem Prócoro – que nome! – entrou no mosteiro. Sua vocação se manifestara muito cedo, desde a sua infância, tendo ele sido curado de uma doença grave por intercessão de Nossa Senhora. No mosteiro, notabilizou-se por sua austeridade. Para ter uma idéia, Serafim, nome que recebeu depois na vida religiosa, jejuava da seguinte maneira: durante a semana, comia uma única vez e bem pouco.E na sexta feira não comia nada em honra da paixão de Cristo. Gostava muito do nome que lhe fora dado, Serafim, porque significa “de fogo” ou “ardente”, “inflamado”, ”flamejante.” Cabia-lhe muito bem o nome porque ele era muito ardoroso na oração; agradava-lhe a imagem do fogo. Dentro de algum tempo, mais adiante, ordenado sacerdote, procurou retirar-se num eremitério na floresta. Vivia isolado, vinha ao mosteiro rezar, fazer algum trabalho, comer, e voltava ao bosque. Alguns curiosos se aproximavam: de longe uma monja observou Serafim, certa vez, dando de comer na mão a um urso da floresta. Há numerosos relatos de animais que o visitavam, como lobos e outros, e estavam pacificamente junto a ele. A monja relatou que, naquela ocasião, ficou muito impressionada com o rosto de Serafim que, segundo ela, estava radiante, iluminado como o rosto de um anjo.
Também nos Atos dos Apóstolos, a história de Santo Estevão, nos informa que este discípulo de Jesus, conduzido ao tribunal e acusado de rejeitar a lei de Moisés, deu o testemunho de Cristo o que lhe valeu o martírio (foi apedrejado), mas, enquanto ele falava ao conselho, ao tribunal judaico, o seu rosto parecia o rosto de um anjo, diz o texto dos Atos - temos também aqui uma espécie de transfiguração.
Voltemos a São Serafim: ele recebia as pessoas que vinham procurá-lo em busca de conselho espiritual, de consolo e saudava cada pessoa dizendo: “minha alegria!” e um conselho muito frequente nos seus lábios era: “adquire a paz e muitos se salvarão ao teu redor.
Achamos que é preciso fazer muita coisa para salvar os outros. Se nós buscássemos o caminho da paz, quer dizer o caminho da fidelidade a Deus, da santificação pessoal, isso transbordaria de nós e já estaria ajudando as pessoas a se salvarem ao redor de nós. Não é preciso fazer muita coisa, mas é preciso ser muita coisa, porque o fazer sem o ser é estéril. Então, se queres salvar muitos ao teu redor, muito bem, adquire a paz, busca a paz que é Deus mesmo, e muitos se salvarão em torno de ti.
Tudo isso para chegar ao ponto que nos interessa:
Certa vez um discípulo de Serafim, também de nome estranho (esses russos!) Motovilov, conversava com o seu pai espiritual, no eremitério da floresta, e o tema da conversa era o Espírito Santo. Serafim dizia ao discípulo que é o Espírito Santo em nós que nos dá a capacidade de fazer o bem e principalmente nos dá a capacidade de orar.
Hoje a transfiguração é narrada por Mateus, mas a narração segundo Lucas traz um detalhe não registrado por Mateus (nem por marcos): quando Jesus se transfigurou diante dos seus discípulos ele estava em oração. Lucas lembra de dizê-lo. E S. Serafim dirá que o Espírito Santo em nós é que nos torna capazes de orar de nos transfigurar interiormente. O discípulo perguntou a ele: “como eu vou saber se o Espírito Santo está ou não está comigo de fato?” Serafim tentava explicar citando exemplo da Bíblia e da vida dos santos, mas o discípulo era meio limitado, digamos assim, e nada entendia. A um certo ponto, o santo quase que perde a paciência, põe as mãos nos ombros do rapaz, sacode-o e diz: nós dois aqui por exemplo, nós dois agora: nós estamos no Espírito Santo . A essa palavras os olhos de Motovilov se abriram como que para uma outra realidade, ou se quiserem, percebeu uma dimensão oculta dessa realidade que nós vivemos, que normalmente não enxergamos. Seus olhos se abriram e viu o rosto de Serafim fulgurar como o sol, tanto que teve dificuldade de fixá-lo por muito tempo, como o sol ao meio dia. Ao mesmo tempo sentiu uma alegria, uma paz que jamais sentira em toda sua vida; embora estivesse muito frio (nevava; pensem no inverno da Rússia) ele sentia calor como se estivesse no verão e também sentia em torno de si uma fragrância, um perfume que não era dessa terra. Ficou assustado com a experiência, entrou numa realidade diferente, enxergou o que normalmente nós não enxergamos e Serafim, então, para tranquilizá-lo, disse: “não temas, tu não poderias ver-me assim se também não estivesses mergulhado no Espírito Santo”.
Existe, portanto, meus irmãos, uma dimensão oculta aos nossos olhos que Deus pode nos fazer ver, como fez ver a esse rapaz, como fez ver a Pedro, Tiago e João ou nos pode fazer pelo menos intuir, sem ver tão claramente.
Lembro de um rapaz...Foi muito longe daqui (eu estava estudando fora nessa época), quando fui a um santuário, onde havia uma casa de formação para seminaristas, de uma certa ordem religiosa. Vi entre os seminaristas, um rapaz que era muito, muito feio, um dos mais feios que já vi em minha vida. Contudo quando ele sorria, misteriosamente, não sei explicar como, ficava mais bonito que todos os outros. Como é possível uma coisa dessas? Uma beleza diferente, superior, de outra ordem, que contrasta com uma feiúra palpável, evidente, quase como se Deus o tivesse feito feio só para sublinhar a beleza daquele sorriso que era o transbordamento de uma vida interior.
“Busca a paz e muitos se salvarão ao teu redor”: isso é transfiguração, isso é o que Deus quer de nós.
Vivemos uma época em que todo mundo, cada vez mais, quer ficar mais bonito a todo custo e sofre quando não consegue se enquadrar nos padrões de beleza impostos pelo mundo; quando se torna uma obsessão perder dois ou três centímetros ou ganhar dois ou três centímetros, mas não se dá a mínima atenção à alma, que fica feia, obscurecida, opaca incapaz de transparecer ou refletir a luz de Cristo.
Se nós pudéssemos ver o outro lado – o que às vezes é dado aos santos –, se nós pudéssemos ver com os olhos de Pedro, Tiago e João, nós veríamos dois fenômenos diante de nós: a transfiguração de alguns e a desfiguração de não poucos.
O que é que os olhos de Deus vêem em nós, afinal?
Examinar a própria consciência; estamos na Quaresma. Precisamos tentar enxergar-nos à luz de Deus, com os olhos de Deus. Isso significa trabalhar para tirar tudo àquilo que impede a luz de Deus fulgurar em nós. Um espelho embaçado, um espelho descascado não reflete bem a figura que se coloca diante Dele.
Devemos ser espelhos da luz de Cristo. Mas como está o espelho?
Que essa palavra de vida, que hoje ouvimos, e que esta Eucaristia nos ajudem a entrar em nosso coração e fazer guerra, com ajuda de Deus, aos obstáculos que nos impedem de refletir a sua luz para o mundo. E guiados pelo espírito Santo prossigamos esta santa celebração pedindo-lhe que nos transfigura por cristo, com Cristo e em Cristo.
Proferida e revisada pelo padre Sérgio Muniz em 20 de março de 2011.
Liturgia da Palavra:
Primeira Leitura: Livro do Gênesis (Gn 12,1-4a)
Salmo: [Sl 32(33)]
Segunda Leitura: segunda Carta de São Paulo a Timóteo (2Tm 18b-10)
Evangelho: Mateus (Mt 17,1-9)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com
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