Transcrição da Homilia do 7º Domingo do Tempo Comum
Continuamos acompanhando neste domingo a sequência do Sermão da Montanha. Jesus continua a sua comparação da Lei Nova, que Ele traz, com a Lei Antiga que Moisés dera ao povo. A nova Lei não nega aquela Lei antiga, mas a leva a sua plenitude.
Hoje, na Liturgia, ressoa como eixo de tudo aquelas palavras do Livro do Levítico: Sede santos porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou Santo. Aparece uma obrigação geral de santidade para o povo de Deus, do Antigo, mas também do Novo Testamento. Aqui já devemos nos prevenir contra uma mentalidade muito difusa que é de defender-se, eximir-se de tal exigência: ‘eu não sou santo nem quero ser, muitos dizem, como se essa atitude fosse uma grande virtude. Muito bem, eu não sou santo, mas quero ser. Essa é a atitude e devo ter porque Deus assim o quer. Obrigação geral: não é para os padres apenas, nem só para o Papa, nem só para as monjas: é para todo o povo de Deus.
Já São Paulo nos lembrava: vós sois o templo de Deus e o Espírito Santo, o Espírito de Deus habita em vós. Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Isso significa que nós, corpo e alma, somos de Deus, somos templo da glória divina e é por isso que em nosso ser por inteiro, corpo e alma, devemos buscar viver a vontade de Deus em todas as coisas. A santidade é isso, é viver como Deus quer. Viver a minha missão, a minha vocação, o meu dia-a-dia, as coisas normais de cada dia, da melhor maneira possível para a glória de Deus e com a ajuda d’Ele, claro. Não é nada diferente disso! Portanto não tens desculpas porque está a teu alcance. Sede santos porque o Senhor vosso Deus, sou santo.
A palavra santo significa, na sua origem mais remota, separado (já falamos disso antes). Deus é santo porque ele é separado das outras coisas, ou seja, Deus não se confunde com a natureza, com o cosmos, Deus não se confunde com a luz, com a energia cósmica... Não! Deus não se confunde com nada do que Ele criou e a criação, sejam as plantas, os animais, os homens, não são parte de Deus como alguns se metem a dizer por aí.
Deus não tem partes, Deus é totalmente uno e é simples, não é composto de partes. Eu não sou parte de Deus, você também não. Nós somos criaturas e o universo que nós vemos é criatura; Ele é o Criador. Ele é distinto, portanto separado, embora esteja presente em tudo o que Ele fez. Ele não se confunde com nada com que fez, está muito acima, infinitamente acima de todo o resto. Portanto, é santo, é o totalmente Outro, distinto, separado. É separado, sobretudo, de todos outros deuses (e isso para Israel tinha uma importância muito grande) porque Ele não é como os deuses dos egípcios, por exemplo, de onde eles tinham vindo após quatrocentos anos, muitos dos quais de escravidão no Egito. Deus não é como os deuses do Egito, da Babilônia ou de Canaã. Ele é diferente, é separado deles. Os deuses dos pagãos brigam entre si, vingam-se uns dos outros, têm inúmeras fraquezas, casam-se, geram filhos, têm intrigas como numa novela.
Deus não é assim. Deus é o diferente e por isso o povo de Deus deve ser diferente, distinto, separado, não pode ser igual ao demais, aos adoradores daqueles outros deuses. Quem olha alguém que pertence ao povo de Israel deve poder dizer: “esse aqui é diferente, ele é distinto, ele é separado, ele pertence a Deus, a um Deus diferente” e quem olha um cristão hoje deve dizer a mesma coisa.
Portanto eu, que pertenço a Deus, não posso pensar como todo mundo, eu não posso agir ou reagir como todo mundo, dizer as mesmas coisas, sem pensar no que estou dizendo. Não posso simplesmente seguir tudo aquilo que se move, não posso me guiar pela massa porque eu sou separado, fui separado – santificado – pelo Batismo para pertencer a Deus.
Deus, para isso, deu ao povo de Israel uma Lei a ser seguida, de modo que eles fossem um povo diferente dos outros povos e se identificassem com o seu Deus, um Deus que não comete o homicídio – portanto não matarás –; um Deus que não mente – portanto não mentirás –; um Deus que não trai – portanto não cometerás adultério – e assim por diante. Serás como teu Deus, na medida do teu possível, é claro. Melhor: na medida da graça que Ele te dá para fazeres a sua vontade.
Aqui me vem uma imagem, que já evoquei certa vez, mas é importante. Tais imagens ajudam a captar e absorver melhor a idéia central que o Evangelho nos quer passar: a imagem do lírio.
Nós compramos lírios em vasinhos cultivados em floriculturas, em lugares de cultivo intensivo de flores. Mas o lírio na natureza, espontaneamente, nasce preferencialmente em lugares pantanosos. O pântano é mais ou menos como o mangue que é uma realidade mais conhecida nossa; mangue é um pântano de água salgada, litorâneo. Mas imagina um mangue de água doce, num lago; é um pântano. Essa região aqui de Botafogo, chegando até a Lagoa e arredores, era uma região pantanosa nós primórdios da colonização. Até hoje nossa igreja tem problemas com a água que brota quando chove, do subsolo. Aqui em baixo desse chão é tudo oco; temos três galerias (essa rachadura no chão aí tem uma história... Um dia eu conto para quem não sabe) e a água ela tende a subir quando chove, alagando o terreno ai em baixo, pantanoso. Na Voluntários da Pátria passa um rio debaixo da rua...
O pântano é uma realidade lamacenta e... Fedorenta! É como o mangue: aquele cheiro, não é só o lixo da poluição. É natural dele porque vem de matéria orgânica em decomposição, pois é um lugar que a natureza usa para reciclar espontaneamente os seus dejetos e refugos.
Então imagina um lugar malcheiroso, lamacento, sombrio e, no meio desse pântano, crescendo exuberante, um lírio. Lírio, e existem de várias cores – eu prefiro o lírio branco; mas existem lírios muito bonitos, cor de rosa, laranja, vermelhos até, enfim. Escolha o seu lírio. Veja: ele este desabrochando no pântano. Abrindo a sua corola e as suas pétalas... É espantosa a distinção, o contraste entre a beleza fulgurante do lírio, suponhamos, do lírio branco, e a lama do pântano. E o contraste não pára por aí, porque nós sabemos por experiência como essa flor é perfumada. Há também o contraste entre o perfume do lírio e o fedor do pântano.
De onde vem que possa brotar uma tal maravilha de cor, de fulgor, de perfume, num lugar desses? Vem de Deus. Se isto é possível, no pântano, isso é possível na minha vida e na tua vida também.
Bem vindos ao pântano, nós vivemos nele! Deus está dizendo que tu podes e deves ser um lírio. Ele está disposto a fazer esse milagre. Cheirar com o cheiro do pântano, estar enlameado com a lama do pântano, é mais fácil, mais cômodo, mais “natural”, diriam alguns... Mas não é uma grande meta para a nossa vida. E aí entra a Lei do Senhor apontando caminhos para sermos diferentes, isto é, sermos santos no meio do pântano. Hoje, por exemplo, aparece a relação com o próximo: Não tenhas ódio ou rancor, repreende o teu irmão para não seres cúmplice do pecado dele. Não busques vingança, ama o teu próximo como a ti mesmo.
No Evangelho nós temos um eco deste ensinamento quando Jesus, com outras palavras, diz mais ou menos as mesmas coisas: sede perfeitos como o vosso pai Celeste é perfeito. Mas é um pouco diferente: lá, sede santos, sede separados porque Eu o Senhor sou separado, mas aqui a coisa é colocada de modo um tanto mais difícil. Jesus aperta o parafuso: sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito. Ora, Jesus, assim também não dá! De fato. Porque, então Ele falou desse jeito? Porque, se Ele nos propusesse outro modelo: “sê perfeita como a tua vizinha”... Da para chegar, se é que já não chegou e ultrapassou em algum aspecto, pelo menos; “sê perfeito como teu chefe”, ah, ah... Essa é fácil! Já estou além dele, quem sabe... Cada um tem de si uma idéia, geralmente um pouco inflacionada. Mas pode ser verdade. Sê perfeito como, digamos, como irmã Dulce... É mais difícil, mas é possível. E mesmo alguém não tendo chegado lá pode achar que já chegou e vai dizer: Já está bom! Mas se Jesus diz: sede perfeitos como o Pai Celeste, aí então ninguém vai poder jamais cruzar os braços e dizer: “Já está bom assim, eu já cheguei”.
Jesus propõe o que está sempre além, de modo que não paremos de caminhar rumo à perfeição, de modo a não acharmos nunca que já está bom, para que não tenhamos aquela atitude comodista ao examinar a nossa consciência: “eu não mato, eu não roubo, não faço mal a ninguém” – refrão triste na boca e na mente dos católicos, que lhes impede uma verdadeira conversão, como se todo o mal do mundo fosse matar ou roubar. E não se sabe também o que estão querendo dizer quando dizem “não faço mal a ninguém”, porque a gente faz muito mal a si e aos outros, mas não se dá conta. Essa atitude impede a verdadeira conversão, impede uma boa confissão dos próprios pecados e assim por diante.
E como é que o Pai Celeste é perfeito? Ele faz chover sobre os justos e os injustos. Já viu a chuva cair só em cima de quem é fiel a Deus? E não cair em cima do outro? Só vai cair no campo ou na terra de quem é amigo de Deus? E no vizinho a chuva não cai? Pelo contrário: a chuva sobre todos, justos e injustos. E o sol? Brilha só para os amigos de Deus? Não! Também para os inimigos de Deus, para os que combatem a Deus brilha o sol; os bens que Deus criou são para todos. Então nós devemos copiar a atitude de Deus, nós devemos fazer o sol do perdão brilhar sobre justos e injustos e a chuva da nossa oração cair sobre bons e maus e assim sereis filhos do vosso Pai que está nos céus.
Eu queria terminar esta reflexão de hoje fazendo, nesse momento, um breve instante de oração, obedecendo ao que Jesus acaba de nos mandar: amai vossos inimigos, rezai por aqueles vos perseguem; porque nós ouvimos essas coisas muito bonitas, mas depois chegamos em casa, a vida é outra, e ninguém se lembra de mais nada até o domingo que vem...
Vamos fazer agora o que Jesus mandou. Entremos no nosso próprio coração, se possível fechemos os olhos e pensemos um pouco nas pessoas que nos ofenderam, nas pessoas que nos são desagradáveis, aqueles que são inimigos, naqueles que nos fizeram mal, nos perseguiram, nos perseguem; aquelas pessoas a quem temos dificuldade de perdoar, estejam vivas ou mortas, presentes ou distantes de nós... Digamos os nomes dessas pessoas diante de Deus...
E agora peçamos a Deus que purifique o nosso coração de todo o rancor, de toda a mágoa; que nos ajude a perdoar verdadeiramente e, mais uma vez dizendo o nome dessas pessoas, peçamos que Deus tenha misericórdia delas e toque os seus corações.
Senhor nosso Deus, Pai Celeste misericordioso, nós vos damos graças porque nos tornastes dignos, apesar dos nossos pecados, de estarmos aqui na vossa presença. Nós Vos suplicamos Senhor, por todos aqueles que apresentamos diante de Vós neste momento. Curai as feridas dos nossos corações e dos corações deles em relação a nós. Derramai sobre todos, as torrentes da vossa misericórdia; dai-nos a graça de agir como Vós, fazendo brilhar o sol do perdão e derramando a chuva da oração sobre aqueles que nos fizeram mal, para que possamos ser dignos filhos vossos, ó Pai Celeste, e participar dignamente da mesa desta Eucaristia, por Cristo nosso Senhor, Amem.
Proferida e revisada pelo padre Sérgio Muniz em 20 de fevereiro de 2011.
Liturgia da Palavra
Primeira Leitura: Livro do Levitíco: (Lv 17,1-2.17-18)
Salmo: [Sl 102(103)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor 3,16-21)
Evangelho: Mateus (Mt 5,38-48)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com
Maravilhoso sermão , Pe Sérgio!!! Como sempre, suas palavras iluminadíssimas, inspiradas por Deus são pérolas no coração. São riquezas que ficam gravadas em algum lugar do espirito. A memória pode não parecer gravar tudo mas o alimento fica. Que Deus o abençoe sempre, lhe dê forças para continuar esse caminho difícil de nos evangelizar, de nos converter, todo domingo... obrigada. Isabel (mãe do Miguel)
ResponderExcluirPrezado Pe. Sérgio,
ResponderExcluirParabéns por esta iniciativa! As suas palavras são sempre maravilhosas. Sempre tirando coisas novas e antigas da sua "bagagem espiritual". Graças a Deus.
Bom, gostaria de propor que o senhor nos indicasse, uma vez por mês, se possível, um livro para complementar a nossa formação. No momento, estou terminando de ler o livro, indicado pelo senhor, intitulado "Maria, um espelho para a Igreja" do Padre Raniero Cantalamessa. Trata-se de um livro muito bom. Obrigado pela sugestão. Paulo (pai do Thiago).