Transcrição da Homilia do 2º domingo do Tempo Comum
Estamos acostumados a ouvir dizer que Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, aliás, repetimo-lo em cada celebração Eucarística, mas o estar acostumado às vezes é ruim porque tira de nós a capacidade da admiração e da justa apreciação das coisas.
No Antigo Testamento, o Salvador prometido pelos profetas aparece com muitos títulos. Mas não existe, senão no profeta Isaias, a imagem do Cordeiro e, mesmo assim, não é bem um título, é uma comparação que Isaias faz. O Salvador é chamado de: Rei de Israel, Filho de David, é chamado Príncipe da Paz, é chamado de Leão de Judá e assim por diante, são títulos majestosos.
O Cordeiro é um ser tão humilde... não é comparação que se faça com um Rei Glorioso. No entanto, o profeta Isaías, lá pelo capítulo quarenta e nove – é a Leitura de hoje – começa a falar de um certo Servo de Deus: O Senhor me disse, tu és o meu Servo em que serei glorificado e no versículo seis: não basta seres meu servo para restaurar as tribos de Jacó (o povo de Israel). Eu te farei luz das nações, para que a minha salvação chegue aos confins de toda a terra.
Está claro que esse Servo é o Salvador prometido. Identifica-se com aquele que os outros profetas também indicaram.
Mais adiante, sempre em Isaias, no capítulo cinquenta e três: este Servo misterioso cujo nome não aparece vai ser apresentado como um cordeiro e como uma ovelha; o cordeiro levado ao matadouro, uma ovelha levada à tosquia. E vai dizer o profeta (aliás, Deus através do profeta): eis o meu Servo. Ele não tinha a aparência que chamasse atenção, muito pelo o contrário, causava repugnância. Era como alguém de quem Deus se tivesse afastado, mas na verdade pelas suas chagas nós fomos curados, o castigo que nos salva recaiu sobre Ele. Assim, ele vai apresentando uma imagem cada vez mais próxima, para nós que conhecemos Jesus, cada vez mais próxima do Cristo crucificado, sem dizê-lo alguém que toma sobre si as dores e as misérias de todo o mundo.
E a comparação com o cordeiro e com a ovelha tem aí o seu lugar de destaque no capítulo cinquenta e três de Isaias, porque o cordeiro era um dos animais preferidos para a realização dos sacrifícios no templo de Jerusalém, sacrifícios prescritos pela lei de Moisés --- que eram de ação de graças, de expiação e assim por diante.
Essa imagem encaixa muito bem no tipo de Messias que Jesus Cristo é. Ele não vem como esperavam e desejavam as pessoas (ou a maioria delas): um Messias imediatamente glorioso que resolvesse todos os problemas e implantasse o reino de Deus aqui e agora. Ele vem como o Messias manso e humilde e toma sobre si as mazelas do mundo, morre de uma maneira considerada maldita (a cruz era uma morte maldita) e assim toma sobre si a maldição deste mundo para que quebrá-la, cancelá-la.
Eis porque, no Evangelho, o último dos grandes profetas, João Batista, aquele que diretamente aponta o Messias—Isaías teria gostado de fazê-lo, mas não pôde: viveu muito antes de Cristo. João apresenta o Messias como o Cordeiro que tira o pecado do mundo, aquele que vai substituir todos os antigos sacrifícios que eram apenas sombra da realidade que está para chegar. Vai substituir todos antigos sacrifícios que eram apenas uma preparação do coração de Israel, apenas um anúncio longínquo d’Aquele que devia vir. Se o sangue dos sacrifícios no Templo de Jerusalém tinha algum valor além do meramente simbólico, ritual era porque indicavam Alguém que viria depois.
É do sacrifício da cruz que os antigos sacrifícios tiravam a sua validade e a sua força e não o contrário. Alguém que ainda devia chegar, mas cuja oferta é de tamanho valor diante de Deus que ela atinge os tempos antes e depois d’Ele. O sacrifício redentor de Jesus está no centro da história e a sua força se alarga, se alastra, por assim dizer, para antes de Cristo até a criação e depois de Cristo, até o fim dos tempos.
É Ele o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, O que nós recebemos em comunhão, quando celebramos a santa Missa. Daqui a pouco nós vamos repetir o gesto de partir a hóstia consagrada, tomando um pedaço e deitando no cálice. Este rito, que tem uma história muito antiga e interessante, na sua forma atual pode ser entendido da seguinte maneira: A hóstia consagrada, nós sabemos, não é uma representação de Cristo (isso não seria fé católica). Depois da consagração, depois de ditas às palavras de Jesus sobre o pão, não há pão, nós o cremos com a Igreja desde os Apóstolos: é o próprio Jesus, também materialmente presente. Do pão, apenas a aparência permanece. Aparência, ou seja, o que os sentidos atingem: o aspecto visível, o gosto etc. Mas a identidade real muda. Os sentidos não atingem, os sentidos são poupados a essa realidade, mas é Jesus: corpo, sangue, alma e divindade. Jesus na Eucaristia vivo, glorioso.
Ele não está morrendo de novo, mas o partir da hóstia consagrada significa ritualmente a morte do Senhor. Repito: Não estamos “matando” Jesus de novo. Significamos ritualmente a morte do Senhor, mas Ele está vivo nas mãos do sacerdote. Depois, aquele pedaço colocado no cálice significa ritualmente a ressurreição de Senhor, porque na morte o corpo e sangue se separaram; na ressurreição novamente se uniram. Então aí temos uma imagem ritual da morte: o quebrar-se do ser (corpo e alma) e, depois, a ressurreição, ou seja, o reunir-se do corpo e do sangue. Imagem ritual, mas Ele está vivo desde o início da consagração e assim permanece.
Para que nós celebramos a Eucaristia? Para que estamos em torno deste altar?
Sabemos que Jesus é Aquele que tem piedade de nós: “Cordeiro de Deus tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós”. É Aquele que pode se compadecer de nós e nos salvar, que pode dar a paz: “Cordeiro de Deus que tirai o pecado do mundo, dai-nos a paz”. Não há paz sem que Deus tenha piedade de nós. Não há paz se os nossos pecados não forem apagados. Só Aquele que tira o pecado pode dar a paz porque com pecado não existe paz. O pecado é guerra, guerra do ser humano contra a si mesmo, contra o próximo, contra Deus, enfim... é a guerra que está na origem de todas as guerras.
Só Ele nos pode dar a paz. Ele é a nossa Paz.
É por isso que o apóstolo Paulo dizia, dirigindo-se aos cristãos da comunidade de Corinto: À Igreja de Deus que está em Corinto, aos que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos, a vós graça e paz da parte de Deus e do Senhor Jesus Cristo.
Chamou-me atenção esta maneira de Paulo falar aos cristãos de sua época (e hoje é a nós que ele se dirige): “À Igreja de Deus que está em Botafogo, aos que foram santificados em Cristo e chamados a ser santos, graça e paz.”
Santificados e chamados a ser santos... parece contraditório. Quem já foi santificado, como é que ainda falta ser santo? Estamos diante daquilo que nós podemos chamar de santidade objetiva – santificados, já santificados – e chamados a ser santos, ou seja, santidade subjetiva.
Objetivamente, já fomos santificados pelo Batismo. Santificados significa separados, consagrados. Separado do comum e reservado para Deus, para o serviço de Deus, para a glória de Deus. Já fomos santificados.
Mas o nosso proceder agora precisa ser trabalhado para que a nossa vida corresponda, cada vez mais, aquilo que nós já somos. Então: santificados e chamados a ser santos.
Consagrados a Deus e chamados a viver de acordo com essa consagração, de modo que o nosso ser, a nossa existência traduza aquilo que Deus fez em nós. De modo que, olhando para nós, o mundo creia, como diz Jesus no Evangelho de São João: para que sejam um e o mundo creia...
O mundo... não pense nesse mundo todo... mas no mundo à sua volta, nas pessoas à sua volta. Possam ver Cristo em você; possam chegar à conclusão que você está realmente se superando e que essa força não vem de você: é Deus agindo. Dirão: de onde vem esta paz no meio dessa grande tribulação? De onde vem esta capacidade de consolar, precisando ser consolado? De onde vem essa capacidade de dar no meio de tanta indigência, de tanta necessidade de receber? Como é possível manter-se de pé, honradamente, fazendo o que Jesus mandou em circunstâncias tão difíceis? E aí, como é possível mudar assim de procedimento? Eu olho, eu já não reconheço mais aquela pessoa... “É que o ‘velho homem’, como diz São Paulo, morreu, foi sepultado; está surgindo uma nova criatura. O Apóstolo disse: Se alguém está em Cristo, é nova criatura, o que era velho passou; tudo se fez novo.
Pois que isso seja visível em nós. Não é um peso que Deus coloca sobre os seus ombros, não é você quem deve fazer isto. Ele é quem faz. A sua parte é, principalmente, não atrapalhar. E, número dois, se puder colaborar minimamente... e já sabemos as vias da colaboração: a oração diária, os sacramentos, a confissão, a comunhão e assim por diante.
Meus irmãos que o Senhor, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos chamou por sua misericórdia que nos santificou, nos ajude a viver esta santificação recebida e nos conceda através d’Aquele que tira o pecado do mundo, graça e paz.
Proferida e conferida pelo padre Sérgio Muniz em 16/1/2011
Liturgia da Palavra:
Primeira Leitura: Livro do profeta Isaias; (Is 49,3. 5-6)
Salmo: [Sl 39(40)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor 1,1-3)
Evangelho: João (Jo 1,29-34)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com
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