Transcrição da Homilia do 4º Domingo da Quaresma
Se fôsseis cegos não teríeis culpa.
Muita gente se considera sem necessidade de salvação. Afinal de contas, salvação de quê? Eu me basto, eu sou suficiente. Tudo o que tenho fui eu que consegui e com muita dificuldade, eu tenho minha liberdade, eu decido minha vida, eu sei o que é bom para mim e assim por diante...
E se alguém diz: “escuta, você não está vendo direito, pede a Deus que mostre, aproxime-se da luz para enxergar um pouco melhor’. A pessoa diz: “não preciso, eu vejo o que é bom para mim.”
Então, se fôsseis cegos não terias culpa, mas como dizeis “nós vemos”, ou seja, como recusais a admitir a cegueira, como vos recusais a aproximar-vos da Luz para enxergar melhor, como permaneceis voluntariamente endurecidos na cegueira, o vosso pecado permanece. E aí o povo forjou aquele célebre ditado: ”o pior cego é o que não quer ver”. Certamente é um resumo adequado dessas palavras de Jesus.
Eu vim a este mundo, diz o Senhor, exercer um julgamento, inverter as coisas, para que quem não enxerga passe a ver e quem vê ou acha que vê fique cego, permaneça na cegueira. Aqueles que se julgam sábios são os que menos sabedoria têm. Os que se julgam livres muitas vezes são os menos livres, são os mais escravos de si mesmo, das suas paixões. Aqueles que se julgam maduros, independentes são às vezes os mais carentes de maturidade, mais dependentes de coisas tais que um homem ou uma mulher de Deus não se deixaria prender por elas.
É preciso uma condição para receber a cura, ou seja, a salvação: reconhecer a própria necessidade, a própria fraqueza, a própria cegueira.
Imaginem um cego de nascença num lugar onde todos fossem cegos de nascença: ele nem sequer saberia que era cego. É mais ou menos o nosso caso, o caso do mundo onde nos encontramos.
Diz-se, outro ditado “em terra de cego quem tem olho é rei”, mas algum espírito ácido e perspicaz já modificou esse ditado e o propôs diferente dizendo: “em terra de cego quem tem olho é caolha”. E vai dizer que está vendo alguma coisa para os que não vêem... Ele vai apanhar, dirão que está inventado, que não existe aquilo...
O cristão é alguém que, supõe-se, recebeu a luz de Cristo, é iluminado. O Batismo na Igreja antiga era chamado com muitos nomes e um deles era iluminação. O cristão foi iluminado. Se ele vive na luz de Deus, ele enxerga o que os outros não vêem. E como ele vive de acordo com o que ele enxerga e que os outros não vêem então ele passa por louco. Ele é o caolho na terra de cego, ele é o louco, ele é o insensato. Vejam que aquele que fora cego e mendigo passa a tentar abrir os olhos dos fariseus: Vós não sabeis de onde ele é, muito bem! Mas abriu-me os olhos: Deus não escuta os ímpios, mas quem faz a sua vontade. Quereis ser discípulos dele? Revoltam-se os mestres e dizem: tu nos estás ensinando, como ousas, tu que nascestes no pecado? E assim a vossa cegueira permanece.
Existe uma reação, uma repulsa à mensagem cristã, à pessoa de Jesus Cristo, ao Evangelho e às suas exigências. Nós devemos enfrentar esta repulsa, não devemos ter medo. Vejam que os pais do ex-cego se encolheram com medo etc. Mas ele foi corajoso, ele foi até o fim. E com isso, mereceu ser curado de um segundo nível da cegueira. No primeiro nível, o nível físico, fora curado e depois ele encontra Jesus e vê Jesus (porque antes não tinha visto Jesus). Jesus se apresenta como o Messias. Declara: Sou eu que estou falando contigo. Ele se ajoelha e diz : eu creio Senhor. Nesse momento o cego passa a enxergar propriamente, ou seja nesse momento ele deixa de ser cego por completo, no momento que ele enxerga quem é Jesus para ele. Eis que os que rejeitam Jesus, rejeitam apesar das evidências: não querem ver o milagre. Permanecem na escuridão.
Muitas vezes as pessoas rejeitam o Evangelho e tudo aquilo que ele comporta, rejeitam a religião, rejeitam a Igreja, rejeitam o cristianismo, por quê? Porque já têm idéias preconcebidas, se aferram a essas idéias e não querem sequer colocar em questão aquilo que para eles já é verdade. Eles decidiram. Há pessoas que, por simpatia ou por antipatia, aceitam ou rejeitam as coisas. Se uma coisa me desagrada, ele é ruim; se uma coisa me agrada ela é boa. Quem disse que é assim? Que lógica é essa? Se me agrada é bom, se não me agrada é ruim. Quem disse? E assim nós rejeitamos ou corremos o risco de rejeitar muitas coisas que Deus quer e abraçar coisas que Deus abomina, só porque nos agradam ou nos desagradam. Eis a cegueira, eis a atitude dos fariseus.
Nós vimos na primeira leitura um relato do profeta Samuel que recebe de Deus a instrução de ir à casa de Jessé e ungir, consagrar como rei de Israel um dos seus sete filhos, porque Deus havia rejeitado o rei Saul, consagrado precedentemente pelo mesmo Samuel. Agora Deus estava providenciando outro rei. Samuel chega, Jessé o convida para sentar-se à mesa, mas ele diz que não enquanto não chegarem todos os seus filhos. Chegam seis e ele fica muito impressionado com a aparência do primeiro, do mais velho: uma bela aparência, um porte que o destaca dos irmãos e, pensa , deve ser esse, esse parece um rei... Mas Deus imediatamente diz ao coração do profeta: não é nada disso! Tu estás olhando a aparência, mas Deus vê o coração. E aí vão chegando os filhos... e nada e nada. Então Samuel pergunta: estão todos aqui? Não, diz o pai, o mais novo está cuidando das ovelhas e das cabras no campo. Manda chamá-lo, diz o profeta! E quando chega Davi, descrito aqui com traços infantis e delicados, Deus diz: É esse! É o menor, é o menos tido em consideração, é o sem importância. É aquele que podia esperar para almoçar depois, é ele.
Então é Deus quem faz ver a realidade, mais profunda. O profeta era um homem espiritual, era um homem de Deus, era um homem santo. Estava acostumado com as coisas de Deus, mas também ele se deixou levar pelas aparências. Teria escolhido outro que não era o escolhido de Deus. Não seria capaz de reconhecer o escolhido do Senhor por si próprio. Até o profeta! Nós então, se não formos iluminados por Deus também somos incapazes de reconhecer o quer que seja a um palmo do nosso nariz. Se não formos iluminados por Deus, seremos enganados pela nossa cegueira seguindo as aparências, seguindo as preferências do nosso coração tão doente, tão viciado. É preciso que Deus mostre.
Então, diante de Jesus, coloquemo-nos hoje humildemente, admitindo: “Senhor, ainda que eu não perceba, sei que tenho muita cegueira a ser curada. Cura o meu coração Senhor, faz-me enxergar o que queres que eu veja. Faz-me enxergar o que queres que eu faça, faz-me enxergar o que queres que eu seja, faz-me ver as coisas à Tua luz, faz-me julgar as coisas à tua luz”.
Termino com um ressalto às palavras do Apóstolo Paulo na Carta aos Efésios, que conclui bem e aplica à nossa vida todas essas reflexões: Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da Luz não vos associeis às obras das trevas que não levam a nada, mas desmarascarais-as. O que eles fazem em segredo é vergonhoso até dizê-lo. Desperta tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará.
Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 03 de abril de 2011.
Liturgia da Palavra:
Primeira Leitura: Primeiro Livro de Samuel: (1Sm 16,1b6-7.10-13a)
Salmo: [Sl 22(23)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Efésios (Ef 5,8-14)
Evangelho: João (9,1-41)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com
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