terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Edição da Homilia do 7º Domingo da Páscoa


Edição da Homilia do 7º Domingo da Páscoa
Que Ele abra o vosso coração à sua luz para que saibais qual a riqueza da glória que está na vossa herança, nos céus, a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos. E nos perguntamos: que significam essas palavras de São Paulo na Segunda Leitura da hoje? Qual seria essa riqueza de glória que nos está destinada? Qual seria essa riqueza tão misteriosa que o faz pedir a Deus que abra o nosso coração para que nós possamos conhecê-la?
A resposta nos é dada pela festa de hoje. Se olharmos para Jesus Cristo, que sobe aos Céus, ressuscitado, levando consigo a nossa humanidade – Ele está ressuscitado, Ele saiu vivo do sepulcro com o seu próprio corpo glorificado e sobe aos Céus levando tudo aquilo que Ele foi aqui na terra, tudo o que Ele recebeu nascendo da Virgem Maria. Ele vem até nós, Deus, Segunda Pessoa da Trindade, Filho Eterno, faz-se homem no seio da Virgem Maria e volta à glória do Pai, carregando consigo essa humanidade. Ele não a deixa por aqui.
Um de nós mora na Trindade, um de nós pertence à Trindade – um homem no seio da Trindade Santa, embora seja também, é claro, filho de Deus. Ele tem a mesma divindade do Pai, sempre teve, mas agora também tem a nossa humanidade. Nossa carne reina no trono de Deus.
Daí nós tiramos duas considerações importantes. A primeira é que o corpo é uma coisa nobre, importante também do ponto de vista da religião.
O cristianismo não é uma religião de salvação meramente espiritual. É claro que a alma é a parte mais importante e a salvação diz respeito em primeiro lugar à alma, mas também ao corpo porque a salvação é para o homem inteiro. E vendo Jesus ressuscitado dos mortos, nós lembramos aquilo que dizia o apóstolo Paulo na Primeira Carta aos Coríntios: Primeiro Cristo, depois os que pertencem a Cristo, ressuscitarão por ocasião da sua vinda. Portanto, Cristo é primícia de uma grande colheita. Ele antecipa na sua carne o que acontecerá na carne dos seus fiéis. E nós diremos: “creio na ressurreição da carne e na vida eterna”.
Um de nós na Trindade, dizíamos, então a carne também é chamada a viver na glória celeste. Por isso não podemos tratar o corpo como se não importasse, por isso a religião tem a ver também com o corpo, com a corporeidade humana. Por exemplo: para não ficarmos flutuando nas afirmações genéricas, vamos descer ao concreto - existem dois mandamentos que dizem respeito ao corpo. “Não matarás” – isso implica a obrigação de cuidar da própria vida, da própria saúde e também de não colocar em risco nem a vida nem a saúde alheia, dentre outras coisas. Depois, “não pecar contra a castidade”. Esse mandamento nos obriga a respeitar o corpo e a sexualidade humana como coisa sagrada e não como artigo de mercado ou como carne de açougue que é como estão tratando já há muito tempo, a sexualidade humana. Deveria ser vista e tratada como coisa sublime e sagrada. Não se trata uma coisa sagrada de qualquer maneira, não se usa coisa sagrada de qualquer maneira. Então, são coisas que dizem respeito ao corpo. A religião tem a ver com o corpo também, porque o corpo também é chamado à gloria celeste.
E agora, uma segunda consideração é que esse processo de ressurreição, de glorificação, já começou em nós a partir do momento em que recebemos o Espírito Santo. Aí se abre o horizonte para a festa do domingo que vem.
A oração inicial de hoje começava dizendo: Ó Deus eterno e todo poderoso a ascensão do vosso Filho já é nossa vitória. Por quê? Ele abre caminho para nós, Ele mesmo diz: vou preparar para vós um lugar. E Ele antecipa a nossa glória. Ele é um de nós, ou seja, carne da nossa carne. Já na glória de Deus estamos representados. A vida do Cristo ressuscitado já começou a operar dentro de nós. Vejam o que Ele diz aos discípulos: João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias. Então, os apóstolos, depois da ascensão de Jesus, ficaram esperando. E no décimo dia, a contar da ascensão de Jesus, receberam o Espírito Santo. Será a festa do Espírito Santo, Pentecostes, na próxima semana. E recebendo o Espírito Santo, eles recebem, através deste Dom, tudo o que é de Jesus. Então, a ressurreição de Jesus passa a operar em nós. A morte de Jesus também passa a operar em nós. Nós passamos a possuir a vida divina dele, também. Somos feitos uma só coisa com Cristo pelo dom do Espírito Santo e assim se constitui a Igreja: é o povo unido a Cristo no poder do Espírito Santo. Nós somos os seus membros e Ele é a nossa cabeça.
Fomos batizados no Espírito Santo e agora, então, a vitória Dele não é só dele, é nossa também. Dentro de nós, de um modo misterioso, mas muito real, vai operando morte e ressurreição. E se nós não atrapalharmos demais e, quem sabe, conseguimos ajudar um pouquinho, essa morte irá dando fim às coisas que nos afastam de Deus e fazendo crescer tudo àquilo que é de Cristo, tudo aquilo que é de Deus, também em nós.
O objetivo pelo qual nós recebemos o Espírito Santo também está claro na liturgia de hoje: o Cristo sobe aos céus, mas não nos deixa órfãos e diz: Recebereis o poder do Espírito Santo para serdes minhas testemunhas aqui e em todos os confins da terra. E o Evangelho chegou até nós graças a isto. É a força que move a Igreja ao longo dos séculos, apesar de todas as dificuldades.
Sereis minhas testemunhas – para ser testemunha de Cristo é preciso uma força do alto. É por isso que Ele nos deu esta força, o Espírito Santo.
No Evangelho, Ele diz a mesma coisa de uma maneira parecida, mas não exatamente com as mesmas palavras. Diz: ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os e ensinando-lhes a observar tudo o que Eu vos mandei.
Eis aí, o mundo está cheio de pessoas que foram batizadas, mas poucos são os que se preocupam em tentar observar o que Ele mandou. Qual é o nosso papel de nós, testemunhas do Cristo ressuscitado? Ajudar essas pessoas que estão bem perto de nós a descobrir a identidade cristã que elas receberam, mas é como se não existisse. Temos que mostrar o que é isto, temos que viver isto, espelhando Cristo para elas. Isso é ser testemunhas de Jesus – ajudar os que foram batizados a serem discípulos, porque há batizados que não são discípulos, nem querem ser e nem se preocupam em ser. Talvez nem nós mesmos não nos preocupemos tanto assim – deveríamos nos preocupar em ser como Jesus quer, em fazer o que Ele mandou e assim seremos o Evangelho para os outros. Evangelho aberto para que os outros vejam.
Ele nos promete a sua assistência, Ele diz: Eis que estarei convosco até o fim dos tempos. Então, Ele não nos abandona. Esta missão é grandiosa, mas está ao alcance de cada um, na sua medida, nos seus limites. A sua missão, Deus lhe deu naquele círculo de pessoas, naquele espaço, naquele tempo que é o seu tempo, que é o seu espaço, seu círculo de pessoas. Ali, você pode e deve ser Cristo, reflexo de Cristo. Isso se dá, porque você conta com a assistência do Espírito Santo.
Nessa Semana, que prepara a festa de Pentecostes, vamos intensificar a nossa oração pedindo o reavivamento desta chama celeste em nós. Que o Senhor acenda com vigor ou reacenda ou faça crescer a chama do seu Santo Espírito em nossos corações para podermos iluminar, inflamar também o mundo à nossa volta. E nesta Eucaristia, Jesus cumpre o que prometera através do Seu Espírito. Através da Hóstia consagrada, Ele permanece conosco todos os dias até o fim do mundo.
Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 5 de junho de 2011.
Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 1,1-11)
Salmo: [Sl 46(47)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Efésios (Ef 1,17-23)
Evangelho: (Mt 28,16-20)
Nota:Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Edição da Homilia do 6º Domingo da Páscoa


Pouco tempo, e o mundo não mais me verá, mas vós me vereis, porque Eu vivo e vós vivereis.

Soa como um poema e ao mesmo tempo como um enigma. O que quer dizer Cristo com estas palavras? O Evangelho de João é cheio dessas expressões musicais e também misteriosas. Mas, no fundo, é simples: Pouco tempo e o mundo não mais me verá – Jesus anunciava a sua morte. Depois: mas vós me vereis - anuncia aí a sua ressurreição, com as inúmeras aparições aos discípulos e, em terceiro lugar: porque eu vivo e vós vivereis – aqui Jesus indica que Ele nos vai dar a participação na sua própria vida de ressuscitado, Ele vai vencer a morte – Eu vivo – e com essa mesma vida Ele nos vificará: e vós vivereis. Então temos aí: morte, ressurreição e vida nova transmitida aos seus.

O acento da liturgia, de hoje até o fim do tempo Pascal (que termina com a festa do Espírito Santo, Pentecostes) é justamente a nossa participação na vitória de Cristo. Não celebramos só a ressurreição de Jesus, a vitória de Jesus, mas celebramos também a nossa vitória através Dele, por meio Dele, n’Ele, bem como a vitória Dele em nós. Celebramos a Páscoa, quer dizer a passagem, de Cristo à vida gloriosa, mas celebramos também a nossa passagem a uma vida nova pela conversão, pela salvação eterna e pela ressurreição dos mortos que virá. Nós participamos desde já da vida do Ressuscitado – é isso o que nós celebramos.

Esta participação nossa na vida do Cristo ressuscitado não é uma maneira bonita de falar simplesmente, não é um modo figurado de ver as coisas; é uma realidade. O apóstolo Paulo, por exemplo, nas suas cartas muitas maneiras e muitas vezes diz coisas como: vós morrestes com Cristo e com Ele ressuscitastes; vós fostes sepultados com Cristo e a vossa vida está escondida com Cristo... Escondida, mas real: existe uma vida nova que se vai manifestar na ressurreição. Então morte e ressurreição da Jesus são duas realidades espirituais que já vão operando em nós. A Páscoa de Cristo vai operando em nós a salvação e a salvação começa pela alma, mas vai transbordar e vai atingir o corpo. Começa pela alma através do perdão dos pecados, através da fé, através da habitação de Deus em nós (o que se chama de inabitação divina: a habitação de Deus em nós), mas vai transbordar do corpo no dia em que a alma, glorificada pela visão de Deus face a face, novamente se reunir à matéria; no dia da ressurreição. A ressurreição é isso: o transbordamento da alma glorificada, ou transbordamento da glória que Deus deu à alma, sobre a matéria, envolvendo-a e transformando-a. Então a salvação começa na alma pela fé, pela habitação divina, pelo perdão dos pecados e terminará, culminará no corpo, no dia da ressurreição gloriosa. É um processo que já começou, está em ação dentro de nós. Nós não devemos atrapalhar, mas, na medida do possível, ajudar.

Agora: como se dá esta nossa participação na ressurreição de Cristo? Ou, melhor dizendo, qual é o elo que nos une ao Cristo Ressuscitado para que nós possamos receber tudo isso? O elo, Jesus nos responde no Evangelho de hoje: Eu rogarei ao Pai e Ele vos enviará um outro Defensor, o Espírito da Verdade, eis aí, o Espírito Santo é o elo que nos une ao Cristo ressuscitado e nos transmite a vida nova d’Ele, a força da sua morte e, mais ainda, a força da sua ressurreição.

A palavra que Jesus usa nesse Evangelho para designar o Espírito Santo, “Defensor”, conforme está traduzido aí, é uma palavra um pouquinho diferente e, em algumas traduções da Bíblia ela aparece quase como no original (só aportuguesada). Essa palavra é importante; quero explicá-la. O que aí aparece como “Defensor” é “Paráclito”. Eu vos enviarei outro Paráclito. Às vezes também é traduzido como “Advogado”. A palavra “Paráclito” vem da língua do Novo Testamento, o grego, e é formada pela combinação de “pará” e “klétos”. “Pará” é junto de, ao lado de; “kletos” é chamado, convocado. Então o que é um paráclito? É alguém que é chamado para estar junto de mim ou de você, em seu benefício, em sua defesa. A tradução exata em latim é “advocatus”. O que faz o advogado é estar junto do réu ou da parte interessada, em suma, para defender os seus direitos, para protegê-lo, para falar por ele, e assim por diante. Então o Espírito Santo é o “parákletos”, é o “adovocatus”, é o defensor, é aquele que está junto de nós. Mas Jesus diz: eu vos enviarei um outro Paráclito ou seja , Ele próprio é também Paráclito.

Ele é o Paráclito que envia outro Paráclito da parte do Pai.

Vejam como a Trindade entra, em cheio no mistério pascal. Se a Páscoa é o cerne de tudo, no coração da Páscoa está o mistério da Trindade Santa.

Jesus – vamos nos figurar um ciclo rapadamente – [movimento descendente:] Jesus o Filho eterno, é enviado e nasce da virgem Maria, morre na cruz, [movimento ascendente:] ressuscita, sobe aos céus, [novo movimento descendente:] envia o Espírito Santo para envolver e vivificar os seus e [novo e conclusivo movimento ascendente:] levá-los ao Pai - assim se fecha o ciclo. O Espírito Santo é fundamental, porque senão a operação é abortada: Jesus ressuscita e... Acabou! Não adiantaria de nada, de nada teria servido aos pecadores. Há que continuar: é preciso que Ele envie o Elo que nos transmite a sua vida nova e o perdão dos pecados: o Espírito Santo.

Jesus vai inaugurar um modo mais perfeito de estar presente aos seus. O Paráclito, diz Ele, permanece junto de vós e estará dentro de vós. Então, o Espírito Santo não estava dentro dos discípulos ainda, estava somente junto deles. Mas passaria a estar dentro deles depois de Jesus ressuscitar e subir aos céus. É um modo mais perfeito de presença, porque Jesus também estará presente, visto que as Pessoas da Trindade, embora distintas: Pai, Filho, Espírito Santo, não se separam. Vindo o Espírito Santo, Jesus vem com Ele e o Pai também. Então o próprio Jesus diz: Não vos deixarei órfãos, eu virei a vós. Mediante a ação do Espírito Santo, também Ele estará presente. Eu virei a vós... Não só para estar junto de vós; virei para estar dentro de vós. Vejam o que segue: e naquele dia, então, sabereis que Eu estou no meu Pai, vós em mim e eu em vós.

Outro poema enigmático: Eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós. O que é isso? Estou no Pai pela mesma natureza divina que eu tenho e recebi d’Ele, enquanto seu o Filho eterno. Eu estou no Pai porque sou Deus com o Pai. Ele é a fonte da qual esse rio (o Filho) procede: Jesus, o Filho, é o rio eterno que procede de uma fonte eterna, o Pai. Eu estou no Pai.

Vós em mim. Como é que nós estamos em Jesus? Estranho? Nós em Jesus... Como é que nós estamos nele? Através da natureza humana, que Ele assumiu nascendo da virgem Maria. Ele tem a nossa carne, o nosso sangue, Ele é um homem verdadeiro, completo, nascido de uma mulher. Através da natureza humana que Ele assumiu no ventre da Virgem, nós todos estamos n’Ele e Ele em nós? Como pode Ele estar em nós? Pelo dom do Espírito Santo que enviou da parte do Pai. Aí, então, meus irmãos, abre-se um horizonte dentro do qual, revela todo seu sentido a narrativa da primeira leitura: os Apóstolos saem de Jerusalém, que era o foco central, o coração da Igreja, para verificar numa terra próxima, a Samaria, o que tinham ouvido dizer. A saber, que o diácono Felipe (fugido de Jerusalém por causa da perseguição, como muitos outros) anunciara o Evangelho de Cristo ressuscitado aos samaritanos, muitos dos quais receberam a fé e foram batizados. Os Apóstolos ouviram dizer e foram verificar e também confirmar, na qualidade de primeiros responsáveis, a pertença desses novos membros à Igreja. Chegando lá, impuseram as mãos aos novos fiéis e eles receberam o Espírito Santo. Temos aqui, provavelmente, uma alusão ao sacramento da Crisma, porque já tinham sido batizados. É verdade que o Espírito Santo é dado também no Batismo, mas há, digamos assim, um robustecimento do dom do Espírito Santo no sacramento da Crisma- seria um outro discurso que a gente não tem tempo de fazer agora, evidentemente... Os apóstolos foram visitar aqueles recém batizados e os confirmaram na fé (sacramento da Confirmação ou Crisma).

Nós recebemos o Espírito Santo no Batismo e um transbordamento do Espírito Santo na Crisma para sermos discípulos de Jesus e continuadores da sua missão salvadora, testemunhas do Evangelho, esse é o motivo, esse é o objetivo. Hoje somos os continuadores da missão de Jesus. Por meio de nós Ele quer salvar o mundo à nossa volta. E Ele o faz de maneira misteriosa. Nem sempre o percebemos, mas na eternidade nós veremos. Através de nós, Ele quer salvar e salva.

A nós, portanto animados e fortalecidos Pelo Espírito Santo e pela Eucaristia, que é o próprio Jesus, cabe dar testemunho e fazer aquilo que o apóstolo Pedro nos dizia na segunda leitura: Santificai, ou seja, glorificai, em vossos corações o Senhor Jesus e estai sempre prontos a dar razões de vossa esperança a todo aquele vo-la pedir. Nós temos que estar prontos para dizer em que e porque acreditamos. Por que resolvemos pertencer a Cristo As pessoas esperam de nós – aqui faço um parêntese, citando ainda o apóstolo Pedro. Ele diz: Crescei na graça e no conhecimento do Senhor Jesus Cristo. Percebam que se trata de uma obrigação de consciência. Cada um dentro das suas possibilidades e das suas limitações, é uma obrigação buscar crescer no conhecimento da própria fé. Não simplesmente ficar dizendo (como quando a gente não sabe o que dizer): “Ah! Eu sou católico. Não vem com essa história”. Bem, é uma defesa em caso extremo de desespero: se você não tem argumento, essa vale, mas, por favor, não fique nisso... Esse tipo de resposta é provisória. Vá atrás do argumento. Se aquela chateação, aquela dúvida, aquela acusação bate sempre à sua porta, você não tem o direito de não ter a resposta para si e para os outros, Procure! Leia! Interrogue! Converse! Vá atrás! Estude! Faça alguma coisa! Não fique parado! Não engavete a dúvida como se ela não existisse. Não engavete as minhocas que colocaram na sua cabeça porque elas vão se reproduzir e, num momento qualquer de crise, vão comer o seu cérebro e a sua alma também. As dúvidas de fé que você acumulou por inércia virão à tona e cobrarão caro...

Então estai sempre prontos a dar razões da vossa esperança a todo aquele que vo-lo pedir, perguntar, Ora, há muitas maneiras de dar razões da nossa esperança: eu posso falar, eu devo falar, sobretudo quando solicitado ou quando há espaço para isso. Também posso criar o espaço para isso. Eu já vi gente católica, de Missa dominical, de comunhão, de pastoral, que na hora de agir, de propagar o Evangelho, se encolhe. Abriu-se uma brecha, uma oportunidade de anunciar Jesus ressuscitado. Ali ela podia introduzir Jesus Cristo, mas não o faz – perde a oportunidade. A ‘concorrência’ não perde oportunidade; cria oportunidades aliás. Nem sempre honestamente, enquanto nós perdemos oportunidades, nos encolhemos. Por quê? Porque não estamos preparados para dar razões de nossa fé. E porque não estamos? Porque não buscamos. E porque não buscamos? Porque somos comodistas, preguiçosos, desinteressados das coisas de Deus.

É uma obrigação, repito, na medida das suas possibilidades. Quem sabe há um programa de televisão ou de rádio que ajude a entender a algumas coisas da nossa fé. Você pode procurar alguma coisa para ler. A internet tem de tudo, de bom e de ruim – basta saber usar. Você tem o acesso à Igreja; há pessoas que podem ajudá-lo, os sacerdotes, sobretudo. Então por que ficar parado? Portanto: criar oportunidade para dar testemunho, para falar, mas não só falar. Viver aquilo que se fala tanto quanto possível, esforçar-nos nesse sentido, porque – e aqui cito o Papa Paulo VI (quem se lembra dele?) –: “o mundo de hoje houve mais as testemunhas do que os mestres. E se ouve os mestres é por terem sido testemunhas”. Queremos ser ouvidos? Sejamos testemunhas. Para isto nos foi dado o Espírito Santo, para isso recebemos a Eucaristia.

Não vamos frustrar o objetivo de Deus recebendo o Espírito Santo e o corpo de Cristo para deixar por isso mesmo. Não vamos “abortar a operação”.


Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 29/05/2011
Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 8,5-8.14-17)
Salmo: [Sl 65(66)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Pedro ( 1Pd 3,15-18)
Evangelho: João (Jo 14,15-21)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Edição da Homilia do5º Domingo da Páscoa



Edição da Homilia do 5º Domingo da Páscoa


E perguntou a Jesus, aquele discípulo: Como podemos conhecer o caminho?

Pergunta mais do que nunca atual, num tempo em que as pessoas estão desnorteadas porque até as coisas mais óbvias são colocadas em questão. Daqui a pouco não se saberá mais, com facilidade, por exemplo, o que é uma família, o que é um homem, o que é uma mulher e assim por diante. Temos vários outros exemplos de confusão que vão se instaurando em cima das coisas mais simples e mais óbvias, que bastaria olhar com um olhar desarmado e honesto para ver o que são. No entanto a honestidade e o desarmamento dos olhares estão cada vez mais longe do hábito mental hodierno e a confusão impera – já não se sabe mais o que é isso e aquilo, o bem é chamado de mal, o mal é chamado de bem, tem-se orgulho das coisas vergonhosas e vergonha das coisas boas e sãs. As coisas vão-se virando pelo avesso cada vez mais e aí tem maior cabimento a pergunta: e como podemos conhecer o caminho? Somos bombardeados de todos os lados com tantas vozes que dizem “é por aqui”.

Jesus responde de modo simples e incisivo: Eu sou o caminho. Aliás, não só o caminho, Eu sou também a verdade e a vida.

Eu, sinceramente, desconheço qualquer grande nome das grandes religiões que há no mundo que tenha tido o topete de dizer coisa semelhante. Se alguém conhece algum fundador de religião ou mestre espiritual que tenha tido a ousadia de dizer “Eu sou, não um caminho, mais o caminho e, além disso, a verdade e a vida e, para agravar ainda mais a afirmação, digamos para torná-la mais escandalosa aos olhos do nosso tempo: ninguém vai ao Pai senão por Mim. Se alguém conhece quem, além de Jesus, tenha dito isto ou coisa semelhante, venha me dizer que eu quero saber. Não me consta que mais alguém tenha tido essa coragem. Ora, alguém que diz isto – “Eu não sou apenas um dos caminhos, mas Eu sou o caminho, o único caminho que leva ao Pai” –, alguém que diz isso ou é louco, ou é charlatão, ou fala a verdade. E, neste caso (sobretudo por identificar-se também com a “verdade” e a “vida”), é também de natureza divina e sabe disso. Resta à oposição o ônus da prova que Jesus seja louco ou charlatão, coisa difícil de provar. Enquanto não provam isso, eu presumo que Ele diz a verdade, sabe o que está dizendo.

Só o Filho de Deus feito homem poderia dizê-lo.

Isso é uma bomba contra todo o relativismo. Hoje tanto faz: cada um constrói a sua verdade, aquela que lhe convém, e se ele amanhece no dia seguinte com um humor diferente, muda as ‘verdades’ para adequá-las ao seu humor naquele dia.

Religião? A mesma coisa; cada um escolhe de acordo com que lhe agrada – “Eu vou lá, porque lá me sinto bem”. Bom, como sempre digo se, se puder juntar o útil ao agradável, ótimo, mas se não for possível, fiquemos com o útil (e o necessário) e dispensemos o agradável. Às vezes é preciso. Muita gente, tendo que escolher entre o útil e o agradável, escolhe o agradável, porque, para tais pessoas, o critério é o gosto pessoal e não mais a vontade de Deus. Não buscam mais o que Deus quer, mas o que elas querem de Deus: o que Ele pode me dar? O que a religião pode me oferecer? Se nós partirmos daí, estamos mal, porque nós passamos a ser o centro da referência de tudo, o centro do universo.

E aí, quem serve a quem? Eu sirvo a Deus ou Deus serve a mim? A religião é serviço do homem a Deus ou serviço de Deus ao homem? Se eu escolho religião desse jeito e, dentro da própria religião, escolho desse jeito as coisas que eu quero e as que eu não quero, crio uma religião “self service” da qual falamos várias vezes aqui. Isso tudo porque não se tem diante dos olhos que a verdade é Alguém, que tem a sua identidade, que foi enviado pelo Pai para nos revelar o que se refere à salvação, para revelar quem somos, para que existimos, qual o nosso destino e o que Deus quer de nós. Não se tem diante dos olhos que Jesus é a verdade, o caminho e a vida e que só se vai ao Pai através d’Ele.

Há um só caminho de nós até o Pai e o mesmo caminho do Pai até nós. Ou seja, se quisermos chegar a Deus, é através de Jesus. E Deus, para chegar até nós, também é através de Jesus. Foi o caminho que o Pai nos deu: seu Filho único feito homem.

Jesus é o Mediador entre o Céu e a terra. Sem Ele não existe comunicação com o Céu. Ele é o mediador porque Ele tem em si a natureza divina, (Filho do Pai eterno), e a natureza humana (filho da Virgem Maria). Ele é a ponte entre o Céu e a terra. É o único caminho.

As bênçãos de Deus, o perdão de Deus, a salvação, em suma, vem por meio de Jesus. E tudo aquilo que nós damos a Deus ou podemos oferecer a Deus vai a Ele por meio de Jesus: a nossa oração, os nossos pedidos, os nossos louvores, as nossas ofertas, os nossos pequenos e grandes sacrifícios... Tudo por meio de Jesus.

Também aqueles que não conhecem a Jesus sem culpa própria podem chegar a Deus, porque Deus é misericordioso e se compadece da ignorância e das trevas em que muita gente está mergulhada. Mas quando os que não conhecem a Jesus e chegam a Deus, também é por meio de Jesus que eles chegam; por meio desse Jesus que eles não conhecem, mas que os conhece e os ama. Sempre por meio de Jesus, queiram ou não, saibam ou não, gostem ou não: é por meio de Jesus que se chega ao Pai.

É Jesus quem afirma isso, não eu.

E na segunda leitura de hoje, tivemos um trecho duma Carta de São Pedro, que dizia ser Jesus uma pedra viva, rejeitada pelos construtores, mas escolhida por Deus. Isso é uma alusão a um salmo profético, que desde há muitos séculos antes de Cristo, dizia: A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se a pedra angular. Pelo Senhor é que foi feito tudo isso: que maravilha Ele fez aos nossos olhos! Jesus é essa pedra rejeitada pelos construtores, pelos chefes do povo de Israel, mas escolhida por Deus para ser a pedra angular da Igreja. Pedro desenvolve a imagem da pedra e diz: vós sois pequenas pedras vivas, formando o edifício espiritual da Igreja. Claro: ‘cristão’ vem de ‘Cristo’, d’Ele nós recebemos a nossa identidade: pedrinhas vivas, vamos formando a Igreja. Esta continua sendo construída (obra de igreja demora...) até o fim dos tempos, até a conclusão da história, quando o Senhor vier, por ocasião da ressurreição dos mortos para o juízo final. Até lá, pedrinha sobre pedrinha vai sendo colocada.

Nessa linha, o Apóstolo continua e diz que nós somos também um sacerdócio santo. Eu queria explorar essa idéia hoje: sois um sacerdócio santo para oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por meio de Jesus Cristo. O que é isso? O que é um sacerdote? Sacerdote é alguém que oferece dádivas dos homens a Deus e recebe de Deus os bens celestes para distribuir aos homens.

Quando o Apóstolo diz que nós, a Igreja, o povo cristão, somos um povo sacerdotal, um sacerdócio santo para oferecermos a Deus sacrifícios espirituais, ele está dizendo que a todos nós foi dada uma certa participação neste poder de Jesus Cristo, que consiste em poder ofercer-nos a nós mesmos, oferecer a nossa vida, oferecer as coisas as coisas que nós vivemos a Deus, pela salvação da humanidade.

Sim! Todas as coisas da nossa vida podem e devem, excetuado o pecado, podem e devem ser oferecidas a Deus com grande proveito. Aquele aborrecimento que você teve na semana passada e que ainda está vivo na sua memória, aquele sofrimento cuja ferida ainda não cicatrizou na sua alma, aquela dores, aqueles receios, os medos, mas também aquelas esperanças, aquelas alegrias, muitas das quais você esqueceu-se de agradecer a Deus... Todas elas, todas essas coisas e tantas outras – a rotina do dia a dia, às vezes o tédio, a aparente falta de sentido de algumas coisas que compõem o nosso cotidiano, tudo isso pode ser oferecido a Deus e até o que parece sem sentido, aí ganha sentido porque estou oferecendo a Deus para a salvação da humanidade, das pessoas à minha volta, dos que eu amo, dos que eu não amo o bastante e de mim mesmo.

Estou inventado? Devo talvez me justificar. Cito o apóstolo Paulo. Ele diz (aliás, é uma frase que se não estivesse na Bíblia soaria blasfema): Completo na minha carne o que falta aos padecimentos de Cristo em favor do seu corpo, que é a Igreja.

Você pode ajudar a salvar o mundo, você pode ajudar a salvar seus filhos, seus netos, sobrinhos, seus amigos, seus inimigos. Você pode ajudar a salvar o mundo. Pedrinha viva da Igreja que você é participa da identidade e da missão salvadora de Jesus Cristo, Sumo Sacerdote. Você pode oferecer a sua vida com tudo que a compõe. E aquilo que parece sem sentido, repito, ganha sentido aí. Assim podemos abandonar aquela pergunta ociosa, tantas vezes inútil e contraproducente: por quê? Para abraçamos uma pergunta nobre, fecunda, cheia de horizontes: para quê? Abandonamos a pergunta pela qual pedimos satisfações a Deus e abrimo-nos ao mistério da sua sabedoria e da sua bondade. Abandonamos a pergunta estéril e abraçamos uma pergunta frutuosa. Deixamos o porquê e vivemos o para quê.

Nada se perde da sua vida, do seu sacrifício, das suas lágrimas, das suas dificuldades. Nada se perde das suas alegrias... Também as alegrias, não só as dores precisam de um sentido maior, visto que alegria, por maior que seja, passa e, desse ponto de vista, também parece sem sentido, porque agora eu me alegro e daqui a pouco “já era” a alegria. Para que ela faça sentido pleno e permanente só há um jeito: colocar nas mãos de Deus, de modo a emoldurá-la no quadro total dos planos salvíficos de Deus, no sentido total da História, que só Ele conhece, cujo curso só Ele domina.

Nós podemos, portanto, ajudar a salvar o mundo. Nesse sentido, Jesus dizia hoje no Evangelho: Quem crê em mim fará obras que Eu faço e fará ainda maiores. Como? É que não somos nós a agir, mas Ele em nós. Tudo o que eu ofereço ao Pai, vejam bem, é através de Jesus Cristo. Não é à toa que a grande maioria das orações na Liturgia se dirige ao Pai e termina “por Nosso Senhor Jesus Cristo vosso filho na unidade do Espírito Santo”. Tudo vai ao Pai, pelo Filho no Espírito Santo e tudo vem do Pai, pelo Filho no Espírito Santo.

O Pai é o destino, é a meta; o Filho é a estrada e o Espírito Santo é o veículo que nos leva até o Pai através do Filho. E de lá, do Pai, traz as coisas do Pai para nós, igualmente por meio do Filho.

Assim dirá a Liturgia daqui a pouco, no final da oração eucarística: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo a vós Deus Pai toda honra, toda glória na unidade do Espírito Santo”, ou seja, no poder do Espírito Santo que nos abraça e nos faz Igreja.

A ieitura dos Atos, e com isso queremos concluir, dizia, no final, que a Palavra do Senhor se espalhava e o número dos discípulos crescia muito, graças ao testemunho dos Apóstolos, não só pela sua pregação, mas pela sua vida. Ora, num mundo onde as pessoas estão cada vez mais angustiadas, perguntando-se “como podemos conhecer o caminho?”, a minha missão de cristão e a sua também é espalhar a luz de Cristo, é iluminar o caminho das pessoas através do exemplo, da palavra e da oração, de modo que também hoje se repita esse prodígio: que a Palavra do Senhor se espalhe e o número de discípulos cresça, pois, quando amamos alguém – pais, filhos, amigos, parentes, cônjuge, enfim – queremos o bem maior para tais pessoas. Ora, o bem maior é que conheçam Jesus Cristo e vivam em comunhão com Ele.

Quando é que você vai dar Jesus às pessoas que você ama? Já se decidiu a isso? O que está esperando para começar hoje mesmo?


Proferida pelo Padre Sérgio Muniz em 22/05/2011


Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 6,1-7)
Salmo: [Sl 32(33)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Pedro (1Pd 2,4-9)
Evangelho: (Jo 14,1-12)
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Edição da Homilia do 4º Domingo da Páscoa



Edição da Homilia do 4º Domingo da Páscoa (2011)

Por suas feridas fostes curados – diz assim o Apóstolo Pedro, na segunda leitura de hoje.

Ele cita brevemente o profeta Isaias que, no capítulo 53, dizia a respeito do Salvador vindouro as seguintes palavras: por nossas faltas Ele foi esmagado, o castigo que nos salva recaiu sobre Ele, por suas feridas nós fomos curados. Nós o reputávamos como alguém ferido por Deus e, no entanto, Ele carregava as nossas culpas, e assim por diante.

Portanto por suas feridas fostes curados. Mas como foi, afinal de contas, que essas feridas aconteceram, porque foi que elas aconteceram?

Certa vez o próprio Jesus contou a parábola da ovelha perdida: um pastor tinha cem ovelhas, perdeu-se uma e ele deixou as noventa e nove em segurança no aprisco e foi pelo deserto em busca da que se havia perdido. É preciso se ter em mente a natureza da Palestina, onde Jesus viveu – é um semi-árido muito severo e as pastagens existem em alguns momentos do ano, mas são raras e a ovelha, desgarrando-se do rebanho, vai encontrar a morte certamente.

Que feridas são essas as do Bom Pastor? São as feridas que Ele sofreu ao sair da Sua Glória deserto adentro, para procurar a ovelha perdida. Deixou no céu o rebanho dos anjos e veio procurar a ovelha perdida na terra. Passou pelos caminhos tortuosos que nós trilhamos, para nos trazer de volta a Si. Feriu-se nas pedras e nos espinhos, padeceu a sede e o cansaço, a dor, o abandono, a traição, a morte, o sepulcro e a mansão dos mortos, tudo isso para nos trazer de volta a Si, para nos levar consigo de volta ao Pai.

Foi procurar a ovelha perdida num abismo muito fundo, o mais fundo de todos, porque Ele desceu à condição de servo, fazendo-se semelhante a nós e desceu mais ainda: até a morte e morte de cruz. Foi ao mais fundo que podia ir. Aí, tendo encontrado a ovelha perdida, volta pelo mesmo caminho, trazendo-a aos ombros. Não a castiga, não a corrige com dureza, mas a coloca sobre os ombros e volta então pelas mesmas pedras, pelos mesmos espinhos, agora com um peso a mais, o peso do nosso pecado, da nossa humanidade da qual Ele se revestiu nascendo de Maria, o peso da cruz, o peso da vida humana com a sua dor e as suas misérias.

Assim aconteceram as feridas que marcaram o Bom Pastor. Essas feridas, na cruz o desfiguravam. Dizia o Profeta: parecia um verme, não um homem, alguém de quem se esconde o rosto quando se passa. No entanto, depois da ressurreição, Ele quis manter aquelas chagas, aquelas feridas nas mãos, nos pés e no lado (nós o vimos nas aparições de Jesus aos apóstolos neste período da Páscoa) e até se oferece para ser tocado por Tomé que não acreditara. Ele mantém as feridas que agora não mais desfiguram, mas ornam como jóias, como gemas preciosas o seu corpo ressuscitado. Eram chagas; agora são rubis. Eram marcas de derrota, agora são troféus de quem venceu a luta contra o demônio e contra a morte. Ele as ostenta não como sinais de dor e de morte, mas como sinais do Amor mais forte que a morte.

Assim foi ferido o Bom Pastor.

Andáveis como ovelhas desgarradas, diz ainda o Apóstolo Pedro. As ovelhas são os animais talvez de mais antiga domesticação que se conhece, ao lado do o cão. Mas os cachorros, soltos por aí, se viram razoavelmente bem; a ovelha não. Ela não sabe achar por si pastagem e água. E também não sabe se defender – perdeu uma boa parte das suas defesas naturais; ela depende do pastor. Ovelha sem pastor é ovelha morta. É questão de tempo, de pouco tempo.

Andáveis como ovelhas desgarradas: é a situação do mundo, reina a confusão, ninguém sabe a quem ou a que seguir. As coisas mais óbvias deixaram de sê-lo. Hoje se pergunta: mas o que é uma família? O que é um homem? O que é uma mulher? Está parecido com profissão: o que é que você vai ser quando crescer? Então perguntam-se as coisas mais óbvias... Daqui a pouco não restará nada de pé! A não ser que tenhamos um critério absoluto, fixo, imutável e a este nós chamamos Deus.

Sobre as ovelhas desgarradas (os que se afastam de Deus) há um Salmo que diz assim: São um rebanho recolhido ao cemitério (imaginem um rebanho pastando no cemitério). A própria Morte é o pastor que os apascenta, são empurrados, se precipitam pelo abismo. Logo seu corpo e seu semblante se desfazem e fixarão entre os mortos a sua morada. Esse é o retrato das ovelhas sem pastor.

Temos duas opções: ou seguimos a Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, ou ficamos a mercê das vozes deste mundo: “vem cá, ovelhinha, vem cá!” E você vai ser tosquiado e vai virar churrasco. Aliás, churrasco de ovelha é muito bom, que o digam os gaúchos...

Para sobreviver é preciso ter a capacidade de reconhecer a voz do pastor. Observe o que Jesus diz: o pastor, o verdadeiro pastor, chega ao aprisco das ovelhas e as chama pelo nome. Isso é um fato, um dado da experiência: a ovelha atende pelo nome. Chama as ovelhas pelo nome e, depois de fazer sair as que são suas, caminha à sua frente e elas o seguem, porque conhecem a sua voz. Mas não seguem a um estranho, antes fogem, porque não reconhecem a sua voz.

Assim, temos que cultivar, recuperar ou desenvolver a capacidade de distinguir a voz de Cristo das outras vozes que se fazem passar pela voz d’Ele. Ele chama e faz sair as que são suas, ou seja, passa no meio da multidão e recolhe os seus, aqueles que reconhecem a sua voz, aquele que ouvem a sua voz. Disse Ele certa vez: quem é da verdade escuta minha voz.

Temos que fugir das vozes estranhas; temos que reconhecê-las enquanto é tempo. Há muitos usurpadores. Ninguém pode usar o nome de pastor por conta própria. Eu não posso me nomear coisa alguma. É Cristo quem chama, quem nomeia, quem envia. Por aí tem “pastores” para todos os gostos... E as pessoas escolhem, também em termos de religião, o que lhes apraz, o que lhes agrada, não o que agrada a Deus. Não se pergunta o que Deus quer, mas: onde me sinto bem, onde é melhor para mim, no sentido de que me é agradável. Claro, se puder juntar o útil ao agradável muito bem, mas nem sempre é possível. Alguma coisa vai me desagradar. E justamente aquilo que me desagrada muitas vezes é o que vai me salvar. Muitas vezes o que me contraria é o que vai me salvar. Não adianta procurar quem fala o que eu quero ouvir para ter a consciência tranqüila, amortecida, anestesiada e evitar o incômodo da conversão.

Religião não é supermercado. No mercado você escolhe o sabor, a marca, o preço, a embalagem mais bonitinha, e assim por diante. Assim faz a geração perversa. O Apóstolo Pedro diz: salvai-vos desta geração perversa.

A voz de Cristo continua ressoando entre nós principalmente através de um canal: a sua Igreja, os legítimos pastores. Vocês viram: era Pedro discursando ao povo (Primeira Leitura). Mas a voz de Pedro, chefe dos apóstolos, e dos demais apóstolos continua ressoando no mundo de hoje; a voz de Cristo através dos apóstolos continua ressoando na Igreja, porque nela temos os sucessores dos apóstolos: são os bispos e o sucessor do apóstolo Pedro, que é o Papa, bispo de Roma. Nada disso foi inventado, é histórico.

Nós nos recebemos assim como somos, nós nos recebemos dos apóstolos que se receberam de Cristo. Nada disso foi decisão ou invenção humana e a voz de Cristo então ressoa ainda hoje através da sua Igreja pelos legítimos pastores.

Quem são os legítimos pastores? O Papa, sucessor de Pedro e os que estão em comunhão com ele. Os outros são ilegítimos. Podem dizer coisas boas, mas está incompleto porque o ser humano não pode inventar Igreja. Imagina que você tenha um restaurante aqui em Botafogo, que começa a fazer muito sucesso e a crescer. E aí alguém pega o nome do seu restaurante e abre outro ali no Flamengo com o mesmo nome, sem falar nada com você. O que você vai fazer?... Aquela pessoa não tem o direito de fazer isso.

Quem é você, quem sou eu para abrir Igreja? Só Jesus pode fazer isso e, que eu saiba, Ele não fez contrato de “franchising” com ninguém.

Pensemos nisto. Não é só questão de religião; há outras coisas mais também. Muitas vozes nos nossos ouvidos: vem para cá que é bom, vem cá ovelhinha, vem cá! Lembrem-se disso. É o diabo, ele quer comer churrasco de ovelha no fogo de chão.

São um rebanho recolhido ao cemitério, a própria Morte é o pastor que as apascenta, são empurrados, precipitados no abismo. Ou se segue a Cristo ou se cai no precipício. São cegos guiando cegos – também palavras de Jesus.

Meus irmãos, através disso tudo, através da Igreja com seus legítimos pastores, através do Evangelho que nós ouvimos e da Missa que nós celebramos, é o Cristo ressuscitado que continua guiando a sua Igreja. Não são homens tais ou quais, mas é o próprio Jesus que está no meio de nós e que guia a sua Igreja.

Agradeçamos a Jesus por pertencer a Ele.

Eu queria que cada um de vocês tenha nas suas intenções a Igreja, para que Ela tenha santos pastores e dignos ministros, para que Ela tenha numerosos, suficientes pastores, mas também de qualidade. Não pessoas que colocam uma estola no pescoço e vão para os jornais dizer ao contrário do que a Igreja diz. Comem às custas da Igreja e não têm coragem de sair e fundar a sua na esquina. Pelo menos eles poderiam fazer isto. Mas continuar comendo às custas da Igreja para falar o contrário, francamente... Não precisamos desses. Esse aí está bom para guiar o rebanho no cemitério.

Rezemos para que Deus nos mande numerosos santos sacerdotes. As vocações saem das famílias, das paróquias; rezemos por nossa paróquia também.

Hoje não é o “domingo do Bom Pastor” por acaso. É um domingo dedicado de modo especial à oração em favor das vocações. Para que Deus santifique o clero (os padres, os bispos...) e mande santas e numerosas vocações. Peçamos isso, é de nosso interesse; nós como rebanho dependemos disso, os nossos filhos e netos também, é de nosso mais profundo interesse.

Supliquemos a Deus e hoje elevemos essa súplica de modo especial pedindo ao Bom Pastor que continue na Igreja o seu pastoreio através de santos pastores e dignos ministros.

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 15 de maio de 2011


Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 2,14ª. 36-41)
Salmo: [Sl 22(23)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Pedro (1Pd 2,20b-25)
Evangelho: João (Jo 10,1-10)
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quarta-feira, 18 de maio de 2011



Transcrição da Homilia do 3º Domingo da Páscoa (2011)


Meus amados,

Jesus caminha com os discípulos de Emaús, que não O reconhecem de imediato, e consola-os fazendo referência às profecias, interpretando à luz das mesmas, os fatos – os fatos de seu sofrimento e da sua morte dolorosa, que soaram para os discípulos como um grande fracasso.

Será que era isso mesmo? E eles remoíam no seu coração essa tristeza. Agora então, fazendo o caminho, Jesus vai-Se dando a conhecer aos poucos.

Nós também estamos a caminho. Eles caminhavam entre Jerusalém e Emaús. Jerusalém, onde Jesus tinha padecido o horror da paixão e da morte de cruz e Emaús, onde reconheceriam a sua face gloriosa. Nós também caminhamos entre Jerusalém, lugar da cruz e da paixão, e Emaús, lugar da revelação gloriosa da face de Cristo. Nós também caminhamos do Calvário para a glória da ressurreição e, no meio desse caminho, enquanto estamos nos dirigindo para Emaús, onde veremos a face de Cristo glorificado, Ele mesmo, embora ainda não imediatamente reconhecível, embora não visível aos nossos olhos, Ele mesmo se junta a nós. Faz caminho conosco e vai-nos consolando, vai interpretando para nós, à sua luz, os fatos que nos parecem enigmáticos e até sem sentido. E tudo vai ganhando sentido na medida em que Ele nos explica as Escrituras; comenta Moisés e os profetas.

A segunda leitura comparava nossa vida a um caminho, a uma peregrinação, a uma migração. Dizia o apóstolo Pedro ali: vivei respeitando a Deus durante o tempo de vossa peregrinação neste mundo: nós somos os caminhantes que vão de Jerusalém a Emaús, das trevas, da escuridão, das interrogações à luz da grande resposta que é o Cristo ressuscitado.

Essa história que acabamos de ouvir no Evangelho tem uma grande semelhança com a estrutura da celebração da Missa, da Eucaristia, estrutura que tendo mudado um pouquinho aqui e ali ao longo da história, sempre se manteve essencialmente igual. O que é que Jesus faz no caminho? Explica a Palavra, explica as profecias. É uma liturgia da palavra, como a que estamos fazendo aqui agora. Ouvimos as Escrituras e compartilhamos as mesmas. É o que Jesus fazia no caminho e, ao chegar, convidado para entrar, Ele toma o pão em suas mãos e dá graças (a expressão “dar graças” em grego se diz “eucharistéin”, donde vai derivar “Eucaristia”). Jesus ‘abençoa’ o pão; provavelmente aqui se trata da consagração eucarística. Ou seja, é a estrutura da santa Missa, basicamente. Primeiro Ele conversa conosco e depois Se senta à mesa conosco, toma o pão e consagra: isto é meu corpo, tomai e comei. Neste momento, os nossos olhos, os olhos do nosso coração são capazes de reconhecê-Lo. O momento em que nós reconhecemos o Ressuscitado que caminha conosco é o momento da Eucaristia.

Nós estamos aqui a cada domingo celebrando a Páscoa semanal. Nós estamos aqui a cada domingo nos encontrando com o Ressuscitado que mostra a sua face gloriosa, revelando-nos sua presença junto de nós; nós, que no meio da correria da semana não percebemos que Ele está conosco, fala conosco, caminha conosco... Aqui os nossos olhos se abrem pela Palavra de Deus e pela Eucaristia e somos capazes de reconhecê-lo ao nosso lado.

Quem não tem esse hábito, esse bom hábito espiritual, tão necessário ao cristão, de participar da Santa Missa, de coração, no dia do Senhor perde a oportunidade de reconhecer Jesus que Se lhe revela, que Se lhe mostra. Perde a oportunidade de ser iluminado pela face do Ressuscitado. Quando eles O reconhecem, imediatamente Jesus some diante de seus olhos. Porém permanece na Eucaristia. Nós não O vemos, mas O temos conosco da mesma forma: o Cristo ressuscitado.

Que essa Presença nos ajude a prosseguir o caminho. Que essa Presença nos ajude a fazer como fizeram eles: levantar na mesma hora e ir anunciar aos irmãos a grande alegria: encontramo-Lo, Ele de fato ressuscitou! Porque quem encontra o Cristo ressuscitado não consegue conter a alegria.

Todos nós, quando temos uma grande tristeza, precisamos dividi-la com alguém, porque isso parece fazer a tristeza diminuir, ela se torna mais leve. Quando temos uma grande alegria, precisamos dividi-la com alguém porque isso torna a alegria maior, nós a sentimos maior, e as pessoas com quem procuramos dividir, em primeiro lugar, as nossas grandes tristezas e as nossas grandes alegrias, são as pessoas que mais amamos. Logo nos vem em mente: tenho que dizer isso a tal pessoa.

Aqui abro um parêntese relativo ao dia das mães, visto que todas as mães estão esperando: “o que é que ele vai dizer pra gente?” É isso que eu quero dizer a vocês: a mãe tem um ministério, um serviço especial, uma vocação especial: a de ser aquela que condivide em primeira linha as grandes tristezas e as grandes alegrias dos filhos. Assim como Maria aos pés da cruz viveu o martírio do seu filho e como ninguém. E como ninguém se alegrou com a sua ressurreição.

Assim as mães estão sempre presentes aos pés da cruz dos seus filhos e em primeira linha também celebrando a ressurreição, o soerguimento dos mesmos. Esse é o ministério, é o serviço da mãe, que Jesus abençoa e confirma através de Maria Santíssima.

Voltando ao nosso fio: nós temos necessidade de condividir as nossas grandes alegrias e tristezas. Pois bem, se alguém encontrou o Cristo ressuscitado, necessariamente ele sente a necessidade de compartilhar com os demais, a começar por aqueles que são mais amados. Senão, das duas uma: ou você não ama de fato, porque, se você não quer compartilhar, você não ama pessoa ou aquelas pessoas; ou então você não encontrou o Cristo ressuscitado, fugiu d’Ele, não se deixou encontrar por Ele.

Os discípulos de Emaús chegaram a casa e já estava escurecendo. O caminho era perigoso; convidaram aquele Viajante misterioso para entrar e aí puderam ter a revelação do Ressuscitado. Não O tivessem convidado, não O teriam reconhecido. Assim, precisamos convidar Jesus para entrar, precisamos convidar o irmão para entrar na nossa casa, abrigá-lo na casa do coração, para termos a alegria de reconhecer o Ressuscitado.

Às mães, sobretudo, às que têm uma missão difícil e às vezes muito pesada, mas sempre acompanhada pela graça de Deus e a todos nós, eu queria deixar uma sugestão. Observem a frase dos discípulos de Emaús a Jesus que ia indo embora: fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando.

Nos momentos difíceis, que não faltam na vida, façamos essa oração, digamos a Jesus que está ao nosso lado, embora talvez não o reconheçamos. Digamos a Jesus: fica conosco porque a noite vem chegando e contigo ao clarão da tua face, mesmo a noite mais escura será o dia mais luminoso. Sem ti até o dia mais belo será escuridão. Portanto, fica conosco, Senhor, porque o dia já declina. Aí, então, pode escurecer do lado de fora, mas dentro estaremos na luz, ao clarão da tua Face gloriosa.


Proferida e revisada pelo padre Sérgio Muniz em 8 de maio de 2011

Liturgia da Palavra:

Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 2,14.22-33)
Salmo: [Sl 15(16)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Pedro (1PD 1,17-21)
Evangelho: Lucas (Lc 24,13-35)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com









quarta-feira, 11 de maio de 2011

Homilia do 2º Domingo da Páscoa

Homilia do 2º Domingo da Páscoa (2011)

Meus Irmãos,

Hoje nós ouvimos o relato da segunda aparição do Cristo ressuscitado que, de acordo com o Evangelho, ocorreu oito dias depois da primeira – e assim fica marcada a Oitava da Páscoa , ou seja, o período compreendido entre o domingo anterior e esse domingo.

Nesta segunda aparição, Jesus acrescenta ‘aquelas bem aventuranças que nós conhecemos, as do Sermão da Montanha (Bem aventurados os pobres de espírito porque é deles o reino dos Céus, bem aventurados os mansos, os puros, os que sofrem por causa da justiça, etc.) Uma outra, graças ao episódio do apóstolo Tomé que, não estando presente por ocasião da primeira aparição, recusa-se a crer no testemunho dos demais, como a dizer: estão todos malucos; eu tenho que ver. Agora, então, Jesus aparece, censura Tomé – Não sejas incrédulo, mas fiel – e proclama uma bem-aventurança ainda desconhecida e agora revelada: bem aventurados os que creram sem ter visto.

Ainda que nós tivéssemos dificuldades de nos encaixar nas outras bem aventuranças, pois que pobre de espírito posso não ser, graças ao meu orgulho, à minha soberba; claro que manso eu não sou porque, ainda que lute contra a minha agressividade, pouco consigo dominá-la etc. Pelo menos nesta bem aventurança eu me encaixo e creio que todos vocês aqui, com facilidade possam se encaixar. Bem os aventurados os que creram sem ter visto - e através desta bem-aventurança, com a graça de Deus, chegaremos às outras que nos faltam.

O apóstolo Pedro, na Segunda Leitura, admirado, diz: Sem ter visto o Senhor, vós o amais, sem ver ainda, nele ainda acreditais – e qual a consequência disso? Isso será para vós fonte de alegria, indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação. Obtereis aquilo em que acreditais: a ressurreição da carne e a vida eterna.

Realmente é obra da misericórdia de Deus o aparecimento de Cristo a Tomé, pois através da repreensão de Cristo ao apóstolo incrédulo a nossa fé é confirmada e a nossa alegria de crer sem ter visto é recompensada.

O erro de Tomé não foi tanto em não acreditar de pronto na ressurreição de Jesus, porque isso todos os outros fizeram quando ouviram a notícia pela primeira vez; ficaram um pouco apavorados, atônitos – vieram as mulheres do sepulcro e anunciaram que tinham visto anjos e que o sepulcro estava aberto etc. Bom... Poderia ser uma espécie de delírio coletivo, quem sabe estavam ainda muito abaladas com tudo que aconteceu; quem sabe alguém lhes pregou uma peça. Então os apóstolos não dão crédito, vão verificar. O túmulo está vazio, muito bem, mas até aí poderiam ter tirado o corpo. Dali a pouco, Jesus aparece aos que estão reunidos no Cenáculo, escondidos com medo. E aparece a dois deles que estão caminhando para o campo e retornam para dar a notícia. E agora aparece uma segunda vez ao grupo dos apóstolos, estando presente Tomé.

Há várias notícias, relatos, testemunhos, que vão se encaixando, e dali a pouco toda a comunidade dos Apóstolos, aquele círculo mais restrito, como também dos discípulos em geral que era um círculo mais amplo, dá testemunho que viu Jesus ressuscitado. Aliás o apóstolo Paulo, na Primeira aos Coríntios, ao falar da ressurreição de Jesus, cita nomes de pessoas que o viram, cita em primeiro lugar Pedro, que nos escreve essa carta donde se extrai a segunda leitura de hoje, cita outros apóstolos e cita depois mais de quinhentos irmãos, diz ele, a maioria dos quais ainda vivia então. Portanto ele estava colocando tais pessoas como testemunhas mediante as quais o fato poderia ser averiguado, bastava perguntar.

Ninguém engana tanta gente ao mesmo tempo; ninguém pode ter a mesma ilusão assim ao mesmo tempo. O fato é, portanto, que Tomé não apenas tem dificuldade em acreditar na ressurreição, mas é mais grave: ele recusa o testemunho unânime de toda a Igreja, de todas as testemunhas do ressuscitado como se todos estivessem doidos e só ele fosse o critério da verdade – Pouco me importa que vocês me digam que vocês viram, que vocês tocaram, que vocês comeram com Ele (como de fato aconteceu, conforme o Evangelho de Lucas). Pouco me importa, eu tenho que ver, eu sou o critério último da verdade... Tudo gira em torno de mim – não interessa se o mundo sabe, se o mundo viu, eu tenho que ver. Então o erro fundamental aí foi rejeitar o testemunho da Igreja inteira e se colocar ele próprio como critério último da realidade, da verdade.

E quantas vezes nós fazemos isto? Ah! Eu sou católico, mas isso eu não aceito. Geralmente quem fala isso, desconhece por completo o assunto do qual está discordando e faz questão de não conhecer. É aquele negócio: não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe; e não venha me dizer por que não quero saber mesmo; porque é muito mais cômodo ficar sem saber, evidentemente. Isso eu não aceito... Mas o que é que você sabe disso? Já procurou saber?

Assim, tantas vezes rejeitamos o testemunho unânime da Igreja de todos os séculos, dos apóstolos até agora e de uma maneira ou de outra rejeitamos o Cristo ressuscitado que é a base de toda a fé e de cada uma de suas afirmações e exigências. Mas a bem aventurança é para aqueles que fato creram sem ter visto. Sem ter visto, sim, mas não sem razão. Sem razão nunca! Porque o sangue que os apóstolos derramaram fala, clama até hoje: Jesus ressuscitou. Deram a vida por isto, por este testemunho. Ninguém mente para sofrer, ninguém mente até o derramamento de sangue, ninguém sustenta uma farsa até esse ponto. Os farsantes são farsantes para tirar vantagem; na hora em que se torna desvantagem, então a farsa acaba.

E levaram até o fim e assinaram com seu sangue a pregação: Jesus ressuscitou. Tiveram a coragem de chegar a esse ponto porque tiveram a experiência do Cristo vivo, ressuscitado e porque receberam o Espírito Santo por Ele enviado. Não tivessem tido esta experiência nada mudaria o medo, a covardia dos apóstolos que estavam escondidos. Pedro mesmo, que negou conhecer Jesus, depois deu a vida por Ele. Por que esta mudança? Estava seguro da retribuição celeste e estava seguro da ressurreição da carne no dia do juízo, senão não o faria. E como estava tão seguro? Ele viu, ele tocou, ele comeu com Cristo ressuscitado. Eis porque ele se admira, conforme escreve nessa epístola, com os cristãos que, como nós, aderiram ao ressuscitado sem O terem visto – sem o ver, vós o amais, sem o ver nele acreditais.

Isso é uma coisa grandiosa. Contudo repito: sem ver, sim, mas não sem razão, não sem uma boa razão.

Esta razão é o testemunho unânime da Igreja desde o sangue dos apóstolos até hoje, de geração em geração. E nós somos as atuais testemunhas do Cristo ressuscitado, responsáveis por levar este anúncio de vitória aos séculos vindouros, transmitindo aos nossos filhos, aos nossos amigos, às pessoas em torno de nós, transmitindo não só pela nossa palavra, mas também pelo nosso modo de viver, assim como aparece na primeira leitura, de Atos dos Apóstolos: O modo de vida dos cristãos era diferente, brilhava. Termina a leitura dizendo que eram estimados por todo o povo e cada dia o Senhor acrescentava ao seu número mais pessoas que seriam salvas. Por quê? Porque eles brilhavam com a luz do Cristo ressuscitado. Eles eram uma tocha viva, eles eram uma luz no meio das trevas. A vida do cristão reflete isto e se não reflete, há alguma coisa de errado. E vejam o modo de vida deles então: os que haviam se convertido eram perseverantes, no ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão (esta expressão designa a Eucaristia, a Santa Missa) e nas orações.

Esse é o retrato da primeira comunidade.

Estamos aqui nós também, perseverando no ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão (daqui a pouco Jesus se fará o nosso alimento: eis o meu corpo que será dado por vós) e nas orações. Somos nós a continuação dessa história. Possamos também levar adiante aquilo que recebemos como povo nascido da ressurreição de Cristo. Que a nossa alegria seja maior do que os problemas momentâneos. O cristão pode até, em alguns instantes estar entristecido, mas ele não pode ser triste porque a alegria do Cristo ressuscitado é maior do que todas as outras coisas – a certeza é maior. Esta fé na qual nos fala a liturgia de hoje é maior. Eu posso estar triste, mas não posso ser triste.

Sou feliz, mais do que alegre, sou feliz porque pertenço a Cristo ressuscitado e Ele me pertence! Isso basta, porque é fonte de alegria indizível e gloriosa.

Meus irmãos, que o Senhor acenda em nossos corações essa alegria indizível e gloriosa e que, por mais que ela seja indizível em palavras, possa ser dita na nossa vida e vista pelos que estão ao nosso redor.

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 1 de maio de 2011

Liturgia da palavra:
Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 2,42-47)
Salmo: [Sl 117(118)]
Segunda Leitura: Primeira Carta de São Pedro (1Pd 1,3-9)
Evangelho: João (Jo 20,19-31)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com

Homilia do Domingo da Páscoa e Ressurreição do Senhor

Transcrição da Homilia do Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor (2011)
Este é o dia que o Senhor fez para nós, alegremos e nele exultemos. Um Salmo que ressoa hoje por toda terra celebrando a ressurreição de Cristo; o apóstolo Paulo diria também: Se Cristo não ressuscitou vã é a nossa fé.

O Evangelho nos fala do túmulo vazio e é claro que o túmulo vazio não seria motivo suficiente para afirmar a ressurreição. Mas não esqueçamos que o relato da Paixão de Cristo nos diz que os opositores de Jesus, com medo que o corpo fosse roubado e depois dissessem que ele ressuscitou, pediram a Pilatos e Pilatos concedeu-lhes um corpo de guarda, alguns soldados, para que se revezassem e tomassem conta do sepulcro, até o terceiro dia.

Depois, os Evangelhos e Atos dos Apóstolos nos relatarão as aparições do ressuscitado, as últimas aparições, e a ascensão ao céu. As aparições do ressuscitado são fundamentais. O Evangelho nos diz que aqueles mesmos que tinham pedido a guarda para o túmulo, diante da notícia da ressurreição e do túmulo vazio, ficaram apavorados e foram subornar os guardas para que dissessem a Pilatos terem dormido enquanto estavam de serviço e que, se houvesse alguma complicação, eles, os sumos sacerdotes, interviriam em favor dos guardas. Isto está no Evangelho.

Não basta, pois, o túmulo vazio, mas também essas informações e as aparições do Ressuscitado vão ser objeto da Liturgia nos próximos dias. No próximo domingo, nós teremos uma aparição do Ressuscitado, uma das mais importantes, e durante a primeira semana da Páscoa (são sete semanas) estas cenas vão se multiplicar.

Os discípulos, de início, ficam atônitos, sem saber exatamente no que acreditar. As mulheres anunciam que viram anjos dizendo que Jesus havia ressuscitado, pois elas foram muito cedo ao túmulo para ungir o corpo (não tinha dado tempo de fazer direito antes do sepultamento pois coincidiu com uma festa sagrada, elas tiveram que se apressar). E o mais importante para afirmar a ressurreição de Jesus é a diferença do ânimo dos discípulos após a sua morte antes da ressurreição e depois da ressurreição, a partir dos encontros com Jesus ressuscitado e da recepção do Espírito Santo.

Vejamos: todos nós lembramos claramente que Pedro, escolhido como chefe dos doze, negou conhecer Jesus com medo de ser também ele preso, julgado e quem sabe até sentenciado à morte; negou Jesus: Não conheço esse homem, e fugiu. Nós sabemos também que os outros discípulos, exceto João, o mais novo de todos (talvez um adolescente na época) fugiram. Só o jovem João ficou aos pés da cruz, com Maria e outras mulheres.

Imperava o medo, imperava o vazio, o desânimo. Depois de Jesus ressuscitado, o Evangelho nos relata uma cena que vai também aparecer na liturgia: dois deles caminham, saindo de Jerusalém, dirigindo-se para a cidadezinha de Emaús distante dali onze quilômetros. Enquanto caminham, conversam sobre sua grande decepção, chamada de Jesus de Nazaré – um homem que fazia milagres, que curava cegos de nascença e até ressuscitava cadáveres, como Lázaro, há quatro dias morto, mas não pôde salvar a si mesmo da morte na cruz. Decepcionados, podemos imaginar o teor desta conversa: “nós colocamos nossa toda esperança nesse homem e ele parecia ser o Messias que nós tanto desejávamos; ele parecia ser o prometido, o enviado de Deus, o anunciado pelos profetas e se não for ele quem seria então? Jamais se ouviu falar de alguém que fizesse as coisas que ele fazia e, no entanto, ele morreu e foi injustamente condenado. O que será de nós agora? Em que acreditaremos e em quem colocaremos a nossa esperança?”

Enquanto caminham e conversam desiludidos, Jesus lhes aparece como viajante desconhecido, misterioso, e vai andando com eles até o fim do caminho quando, enfim, se revela e, quando o reconhecem, imediatamente o Senhor desaparece diante de seus olhos.

Depois dessas aparições, Jesus vai se despedir dos discípulos, subirá aos céus, a seus olhos, será ocultado pelas nuvens e não mais o verão com os olhos da carne, mas Ele promete: Eu estarei convosco todos os dias até o fim do mundo; e agora esses discípulos aguardarão em Jerusalém, ainda com um pouco de medo, mas já reanimados porque Jesus, antes de subir aos céus, havia prometido que eles receberiam um certo “dom do alto”, eles não sabiam bem o que era, mas que aguardassem em oração. E assim fizeram. Reunidos, ainda com medo, de portas fechadas, esperando esse tal do “dom do alto” misterioso quando, enfim, no dia de Pentecostes, vem o Espírito Santo sobre eles. Ouve-se um vento impetuoso, bem mais que esse que está soprando aí fora, que sacode tudo; a casa onde eles estão treme e um fogo desce do céu, línguas de fogo sobre cada um dos discípulos.

O Espírito Santo se manifesta de modo visível e, a partir daquele momento, eles adquirem força, coragem, abrem as portas e enfrentam o mundo. Pedro sairá e dirigir-se-á aos peregrinos que vão ao templo de Jerusalém, anunciando que Jesus (que eles pediram para crucificar) ressuscitou e é o Salvador. É a primeira leitura de hoje. Faz parte do discurso de Pedro. Pedro, que tinha medo, que fugiu; Pedro, o covarde, mas arrependido e perdoado por Jesus. Há pouco ainda receoso da multidão, agora ele perde o medo e anuncia o Ressuscitado de peito aberto. Mostra-se ao mundo; assim também os demais discípulos: todos eles começam a anunciar Jesus Cristo sem temor.

De onde vem uma mudança dessas? Teremos aí uma alucinação coletiva? De resto quem mente, mente para tirar vantagem. Mas esses não tiraram vantagem humana do anúncio de Jesus ressuscitado. Humanamente falando, eles até foram prejudicados, porque todos morreram mártires. Novamente excetuando-se João, que permaneceu aos pés da cruz. Certo que ele viveu o martírio aos pés da cruz com Maria. Não precisava mais... Mas os que fugiram tiveram a oportunidade de responder ao amor de Jesus à altura, derramando o próprio sangue e confessando, assim, a sua fé e seu amor, desprezando o mundo que passa.

Pedro está com segurança absoluta na retribuição celeste e na ressurreição da carne que virá, também para nós. Por isso eles enfrentaram a morte. Não o teriam feito, não teriam tido essa coragem se não tivessem visto Jesus ressuscitado, como dizia o apóstolo Pedro na primeira leitura: Deus o ressuscitou, concedendo-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido , a nós que comemos e bebemos com Jesus depois que Ele ressuscitou dos mortos. Não era um fantasma. Comemos e bebemos com Jesus depois que ele ressuscitou dos mortos.

Meus irmãos, a propósito do martírio, que é o testemunho de Cristo, nem todos teremos a graça suprema de dar a nossa vida por Aquele que deu a vida por nós. Mas alguns tiveram essa graça e outros ainda a tem.

Vou levar ao conhecimento de vocês, se bem que um ou outro já deva saber, um fato recente e muito preocupante: no Paquistão, ao noroeste da Índia, país de religião predominantemente islâmica, uma católica de nome Ásia Bibi foi sentenciada à morte recentemente. Aguarda a sua execução numa solitária, doente, sem cuidados médicos. Todos nós ouvimos falar de Sakineh, a mulçumana iraniana que foi condenada à morte por apedrejamento por adultério e o mundo se levantou em favor da vida dela (e não digo que tenham feito mal; culpada ou inocente, fez-se bem em defender Sakineh). A imprensa mundial militou em favor dela. Onde está à imprensa mundial em favor dessa católica cujo crime foi responder, depois de muitas vezes instigada pelos seus colegas de trabalho a deixar o cristianismo e abraçar o islamismo, responder serenamente: “eu permanecerei cristã porque Jesus está vivo, Maomé está morto”. É um fato... E acrescentou: “Jesus é o verdadeiro profeta de Deus”. Levaram-na aos tribunais, condenaram-na, por blasfêmia, à morte.

Porque a imprensa mundial não o noticia? Só a imprensa católica. Muitos de nós não sabíamos disso, só soubemos agora. Por quê? Já há vários dias, quarta feira da Semana Santa a Igreja no Paquistão pediu que fosse dia de oração em favor dessa nossa irmã e de todos os cristãos perseguidos dessa forma. O Vaticano também pediu. Nós nem ouvimos falar. Por quê? Se fosse uma coisa ruim, contra a Igreja, já estaríamos sabendo e da pior maneira possível: agravado com suposições infundadas, acréscimos etc. Trombeteariam! Mas como é a nosso favor, como a vítima agora é a Igreja Católica na pessoa de seus membros, silencia-se. Isso é perseguição!

Bem vindos à nova era dos mártires. E não pensem que está longe de nós. Já existe perseguição, de várias maneiras e a mais capciosa é a que não aparece ou não se mostra como tal. Meios de comunicação, televisão, idéias veiculadas aqui e ali, tudo para destruir o que sobrou do cristianismo no seu coração, na sua cabeça, na sua família, na sua vida.

E agora que faremos nós? Se cremos em Cristo ressuscitado, se o encontramos ou se nos deixamos encontrar por Ele, se de fato experimentamos sua vida em nossas vidas, que faremos nós? Vamos nos recolher com portas fechadas ou vamos anunciar ao mundo que Cristo ressuscitou com nossa vida, sobretudo?

Meus irmãos, quero concluir com as palavras do apóstolo Paulo: se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos para alcançar as coisas do alto onde Cristo está sentado à direita de Deus. Aspirai às coisas do Céu e não as da terra, pois vós morrestes – morrestes para essa vida, para esse mundo que passa, para as coisas transitórias – e a vossa verdadeira vida está escondida com Cristo, em Deus.

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 24 de abril de 2011
Liturgia da Palavra:
Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos (At 10,34ª.37-43)
Salmo: [Sl 117(118)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Colossenses: (Cl 3,1-4)
Evangelho: (Jo 20,1-9)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com

Homilia do Domingo de ramos

Nota: devido a sua longa extensão, consulte este Evangelho diretamente na Bíblia

Transcrição da Homilia do Domingo de Ramos

Hoje, naturalmente, devemos tentar ser bem breves, até porque a palavra do homem jamais pode cumprir a função de salvação, que é só da Palavra de Deus. A nossa palavra está a serviço da d’Ele e não ao contrário, mas é preciso dizer alguma coisa.

Eu gostaria de, hoje com vocês, refletir um pouco sobre aquela exclamação de Cristo na cruz que causa tanta dificuldade às pessoas em geral: ”Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?”. Parece uma falta de confiança no Pai Celeste, parece um grito de desespero, parece falta de fé e assim por diante. Como será que nós devemos entender isso nos lábios de Jesus? Bom, vocês sabem que nos momentos difíceis, pessoas religiosas costumam logo lembrar-se de Deus (aliás não só nos momentos difíceis, porque senão seria uma religião capenga) e quando nos lembramos de Deus, conversamos com Ele.

Jesus, como todo israelita que se prezasse na época e até hoje (também os cristãos deveriam imitar isso), tinha de cor os Salmos, porque estes eram a oração preferida do povo de Israel e é a oração preferida da Igreja, que se edifica sobre a herança de Israel. Existe um Salmo, que foi nosso Salmo Responsorial de hoje, o Salmo 21 que começa exatamente com esta frase ”Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?“. É um grito de socorro, de um homem que está abandonado por todos, que se sente no vazio, embora ele saiba, no fundo, que Deus está com ele porque não faria sentido falar com Deus se de fato ele o tivesse abandonado. É um sentimento de abandono, mas a fé vai no sentido oposto, ela sabe que não estamos abandonados. Vejam que o Salmo começa com aflição “Riem de mim todos aqueles que vêem“, “cães numerosos me rodeiam furiosos”, “Transpassaram minhas mão e os meus pés” (é uma profecia sobre o suplício da cruz: transpassaram minhas mãos e os meus pés, repartem as minhas vestes, sorteiam a minha túnica; profecia escrita séculos antes, cerca mil anos, de pelo menos antes de Cristo), vós, porém, Senhor não fiqueis longe, continua o salmista. E vejam como termina o Salmo: “anunciarei o vosso nome a meus irmãos e no meio da assembléia hei de louvar-vos. Vós que temeis ao Senhor Deus, dai-lhes louvores, glorificai-o descendentes de Jacó”. Então, começa com um grito de súplica e de aflição e termina como um grito de esperança e de alegria, louvando a Deus. Portanto esse Salmo é uma profecia que aponta a morte , mas a também para além da morte, a ressurreição, a vitória de Cristo.

Jesus na cruz estava rezando esse Salmo, foi a sua última oração. Todas as pessoas que o circundavam conheciam também o Salmo e provavelmente o sabiam de cor. Aqui não estão todos os versículos , existem outros versículos muito bonitos, por exemplo: “fostes vós que me formastes as estranhas e no seio de minha mãe me tecestes, me destes vida, desde o ventre de minha mãe sois o meu Deus. Lembremos: Maria estava aos pés da cruz; ela também conhecia o Salmo; Jesus está ofegante porque a morte de cruz comporta um movimento que gera asfixia progressiva, força muito a respiração e o coração (é isso que causa a morte). Sofrendo asfixia, provavelmente Ele não tem forças para rezar todo o Salmo até o fim e faz como faria um moribundo, sem forças, que e começasse a rezar: Pai nosso que estais no Céus... e as pessoas em volta, certamente, continuariam a oração, murmurando ou em voz alta...

Podemos imaginar esta cena: Jesus que começa a oração Salmo, Ele “puxa”, como nós dizemos, a oração do Salmo e as pessoas então continuam, porque Ele não tem forças para continuar. E o. Salmo termina com um grito de louvor, de confiança. Portanto, longe de ser um desespero de Jesus, é, pelo contrário, uma oração de profunda esperança.

Jesus, ao dizer essas palavras, toma sobre si o abandono da humanidade. Aí sim, Ele está dando voz aos sem-Deus, porque o homem, quando abandona Deus, sente-se abandonado por Deus. Mas na verdade, foi ele quem O abandonou. O mergulhado no pecado, ele sente como se Deus o tivesse deixado, mas Deus nunca o deixa; foi ele quem deixou a Deus. Então Jesus dá voz à humanidade afastada de Deus, dá voz a humanidade que abandonou a Deus e por isso se sente abandonada. Jesus toma sobre si o pecado da multidão, o abandono da multidão sem Deus e apresenta ao Pai, na sua voz, na sua carne, no seu sangue derramando, o drama de todos nós, o sofrimento da humanidade inteira.

É uma oração de esperança e é uma oração sacerdotal. Ele intercede por todos. Ele toma sobres si, como dissera o profeta Isaías, o pecado das multidões.

Eu gostaria também de concluir sublinhado o fato muito estranho que está ai no versículo 52 do Evangelho, aliás um pouco antes: a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, a terra tremeu, as pedras se partiram, os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram e apareceram a várias pessoas na cidade de Jerusalém.

Eis o que acontece: a cortina do templo, que separava a parte mais sagrada, onde só uma vez no ano o sumo sacerdote entrava para oferecer determinado sacrifício , aquela cortina rasgou-se, ou seja, o acesso a Deus, o acesso à parte mais sagrada está aberto a todos, não existe mais a separação. Assim que Cristo entregou a sua vida por nós, o Santuário se abriu, esse Santuário é a imagem do Céu. Está aberto o Céu, nós podemos entrar, graças ao sacrifício redentor de Cristo. Abriu-se o Céu para nós é isto que significa a cortina do templo rasgado de alto a baixo e também a terra tremeu, as pedras se partiram, os túmulos se abriram e alguns ressuscitaram e apareceram, ou seja, não só o Céu se abriu para receber-nos, mas também os túmulos, a terra se abriu para devolver os mortos.

É o início de um novo tempo. A partir de agora, a morte está derrotada. Jesus, com a sua morte, derrota não só o demônio que tiranizava a humanidade e que nos mantinham escravos pelo pecado, mas também derrota a morte. É questão de tempo. Ele ressuscitaria dali a alguns dias e também nós ressuscitaremos no dia do Grande Juízo, do Juízo Final. Creio na ressurreição da carne na vida eterna e Ele já deu uma demonstração disso com esse milagre acontecido no momento da sua morte.

Portanto, meus irmãos, eu queria convidar-nos a todos a vivermos uma vida nova em Cristo como quem morreu com Ele e com Ele ressuscitou. Sejamos nós esses ressuscitados que saíram dos túmulos para proclamar a vitória de Jesus. Saiamos nós do túmulo do nosso egoísmo, do nosso pecado, da nossa falta de fé, da nossa preguiça religiosa sobretudo, da nossa ignorância voluntária que não quer saber de Deus, da nossa soberba e de tantos pecados, saiamos dos nossos túmulos pela conversão sincera e anunciemos ao mundo por uma vida nova, uma vida ressuscitada, que Cristo venceu!

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 17/04/2011.
Evangelho (Ritos iniciais): (Mt 21, 1-11)
Primeira Leitura: Livro do profeta Isaias: (Is 50,4-7)
Salmo: [Sl 21(22)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Filipenses: (Fl 2,6-11)
Evangelho: Mateus (Mt 26,14-27,66)
Transcrição da Homilia do 5º Domingo da Quaresma

Meus amados irmãos, minhas prezadas irmãs.

Nós temos ouvido nestes últimos domingos Evangelhos realmente muito fortes, marcantes e podemos dizer que o de hoje é o ponto culminante. De fato, há dois domingos atrás, Jesus se encontrava com a samaritana na beira do poço, pedia de beber e acabava oferecendo a ela uma água viva. Jesus se manifestava então como quem sacia a nossa sede, nossa sede mais profunda. No domingo passado, vimos Jesus que curava o cego de nascença. Jesus se manifestava como luz para nossa vida, para nossos passos. Hoje, Jesus se manifesta como a própria vida ao ressuscitar Lázaro, há quatro dias morto e já em decomposição.

A morte e a decomposição da carne são, aqui, uma alusão, um sinal, do pecado que é a verdadeira morte, a verdadeira putrefação do homem. Se nós pudéssemos ver o que os olhos de Deus vêem, nós nos horrorizaríamos com o pecado mais que nos horrorizamos com a morte... Mas não vemos. Se nós pudéssemos ver o estado de putrefação em que se encontra a alma voluntaria e conscientemente afastada de Deus, digamos, endurecida, obstinada no pecado, nós teríamos mais asco do que se víssemos a putrefação de um cadáver. Mas nossos olhos não o vêem; só os olhos de Deus vêem. Temos que descobrir isto à luz da fé, temos que tentar enxergar com os olhos de Deus o que nos causa o pecado: algo mais horroroso que a morte é a putrefação da alma; mais horroroso que a putrefação da carne.

Jesus, com isso, nos dá um sinal do que Ele veio fazer: a salvação é justamente isso: aquilo que Ele fez ao cadáver de Lázaro, isso Ele faz a todos nós espiritualmente quando nossos pecados são perdoados. É o que chamamos de salvação. A palavra salvação é muito bonita na sua etimologia: vem do latim salus, que significa saúde, então dizer ‘salvação’ é dizer a ‘saúde’ do homem inteiro, da sua alma mas também do seu corpo.

Como assim? Jesus operou muitas curas, ressuscitou muitos mortos, mas quem fica curado milagrosamente, um dia fica doente de outra coisa e Lázaro, que foi ressuscitado, um dia certamente morreu. Aliás, o Evangelho de João relata no capítulo seguinte (Jo, 12, 10) a seguinte observação: os sumos sacerdotes que eram opositores de Jesus decidiram matar Lázaro ressuscitado. Queriam que ele morresse... De novo: “Decidiram matar Lázaro pelo fato de que muitos judeus, por causa dele os abandonavam e passavam a acreditar em Jesus”. Vejam: um endurecimento de coração desses homens que, diante das maiores evidências, querem calar a própria verdade. Querem que os fatos estejam a serviço deles, que o mundo gire entorno do que eles pensam. E se os fatos são contrários às certezas, às posições deles, então vamos torcer os fatos... O que importa que a nossa opinião prevaleça; é dureza de coração. Quantas vezes diante da verdade as pessoas se comportam assim. Vêem, mas negam; vêem , mas não querem ver. Mas a verdade se impõe por si mesma.

Mas a ressurreição de Lázaro foi uma ressurreição, por assim dizer, “provisória”, pois Lázaro voltou para esta vida: portanto voltou a ter fome, a ter sede, a se cansar, a ter sono, a sentir dor, a envelhecer e um dia morrer , se é que não o mataram mesmo, visto que não se tem mais notícia dele depois dessa observação que o Evangelho faz. Então não foi uma ressurreição gloriosa como a que nós esperamos e mencionamos no Credo (“creio na ressurreição da carne e na vida eterna”). Aquela ressurreição da qual fala Marta no diálogo com Jesus. Teu irmão ressuscitará, diz Ele: eu creio que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia ou seja no final, na conclusão da história, no dia do juízo final, eu sei que ele ressuscitará. Nós esperamos esta ressurreição (se alguém tiver curiosidade procure na Primeira Carta de São Paulo aos coríntios, capítulo quinze. Todo o capítulo quinze fala da ressurreição futura, da nova ressurreição- não apenas a restauração do corpo, mas a glorificação da matéria).

Caminhamos para esta ressurreição, igual à de Jesus, que não sente mais fome, sede, dor, não envelhece. Jesus que aparece, desaparece depois de ressuscitado, que assume uma aparência diferente e se torna momentaneamente irreconhecível (alguns discípulos o vêem sem o reconhecerem de pronto). Neste caso, a matéria vai assumir outras propriedades que nós desconhecemos na experiência presente.

Pois bem, nós caminhamos para essa ressurreição gloriosa e ninguém pense que essa vai ser um ponto isolado lá no futuro. Ela é um processo. Sim, a ressurreição está em processo, ela já começou. Começa na alma e termina no corpo. A ressurreição, o processo de ressurreição começa no dia do nosso Batismo. No Batismo nós recebemos o Cristo ressuscitado em nós e somos assimilados a Ele (recebidos n’Ele). Tornamo-nos habitação da Trindade. É um processo, e nesse processo, como nos diz a segunda litura de hoje: se o Espírito (é o Espírito Santo) d’Aquele que ressuscitou Jesus habita em vós, Aquele que ressuscitou Jesus vificará também vossos corpos mortais graças ao Espírito Santo que habita em vós. Então transbordará no corpo o que já começou na alma. Ouçamos de novo o Apóstolo que diz: os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus, vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito se é que o Espírito de Deus habita em vós. Temos, em nós o Espírito Santo e isso traz consigo, como consequência, a exigência de vivermos de acordo com Este que habita em nós e não segundo a carne; não de modo meramente humano, isto é o que significa viver segundo a carne: de modo meramente humano.

Por exemplo, é humano, meramente humano, amar quem me ama e odiar quem me odeia. Mas é divino amar quem me ama e amar quem me odeia, perdoar e rezar por quem me odeia. Quem ama a quem o ama e odeia a quem o odeia vive de modo meramente humano, vive segundo a carne. Quem ama quem o odeia ou pelo menos tem o desejo sincero chegar a isso, e busca rezar pelos que o perseguem, perdoar os que o ofenderam, esse não vive só segundo a carne; está além: ele vive segundo o Espírito. Então, viver segundo a carne é viver conforme o óbvio da natureza humana, não é necessariamente mal (às vezes sim), mas viver segundo o Espírito é dar um passo além. Então, quem recebeu o Espírito Santo deve viver assim. Deve buscar isso. E tem a força de Deus para tanto.

Já começou aí a ressurreição: é um processo de transformação que começa no fundo da alma. Claro que precisa de sua colaboração, mas quem faz é Deus porque Ele está presente. Posso amar como Deus ama, basta meu o consentimento e então a ressurreição já vai acontecendo.

Nós vamos passar pela morte, mas se morrermos na graça de Deus , quer dizer na amizade com Deus, na união com Deus, nós vamos um dia contemplá-Lo, face a face, nossa alma estará diante d’Ele. O que acontecerá com a alma que contempla Deus face a face? Ela ficará radiante na luz de Deus como o espelho diante do sol. Esta alma, radiante na glória de Deus, no dia da ressurreição, quando ela se unir novamente à matéria, a matéria será glorificada por consequência. A glória que a alma recebeu contemplando Deus face a face vai transbordar e vai inundar a matéria, vai ser transmitida ao corpo e esse corpo então será um corpo glorioso. É essa ressurreição gloriosa, a ressurreição de Cristo, que esperamos também para nós. O Apóstolo dirá na Primeira aos Coríntios, no capítulo que acima lhes recomendei: todos ressuscitaremos, cada um por sua vez, Cristo em primeiro lugar [...], depois os que pertencem a Cristo.

Pois bem, meus irmãos, quem é o cristão nessa ótica? O cristão, o discípulo de Jesus, é aquele que começou a ressuscitar no dia que foi batizado e vive uma vida de ressurreição uma vida em direção à ressurreição. O que é isso? Vive dando morte ao pecado, dando morte ao mal, vive morrendo para tudo quem não presta. Vive uma vida nova para Deus a cada passo. Ele vai morrendo e vai renascendo a cada dia. Morrendo pelo reconhecimento dos seus próprios pecados, pela penitência que faz, pelo sincero arrependimento, pela busca de uma vida renovada. Ressuscitando pela prática do bem conforme Deus lhe mostra, buscando a perfeição, unindo-se a Deus na oração, no sacramento da Eucaristia, principalmente.

Querem um momento muito claro de ressurreição na nossa vida, por exemplo? É quando nos aproximamos do sacramento da Confissão. Naquele momento, Jesus faz o que fez com Lázaro: manda tirar a pedra do túmulo e diz ao defunto: “vem para fora, vem para a vida, vem para a luz, você que está cheirando mal”. E Ele cura a nossa alma , transforma e o que estava fedendo e agora já não fede mais, passando ao que o Apóstolo Paulo chamará de “bom odor de Cristo”.

Eis aí! Eu queria convidar todos nós a lembrarmos disto nessa semana que inicia e nesse fim de quaresma, até a Páscoa .

Nossa vida consiste, deve consistir, num morrer e num ressuscitar. Pergunte-se ao começar o seu dia, na sua oração: Senhor para que eu devo morrer hoje? Ou o que eu devo matar hoje em mim? A que eu devo renunciar? O que eu devo abandonar? E no final do dia examine e veja: morri para as coisas ruins e vivi para Deus ou fiz o contrário? Diante dessas coisas que eu passei hoje, que eu realizei, como estará minha alma diante de Deus? Cheirando mal? Cheirando bem? Em que grau estará esse bom odor ou esse mau odor? E assim examinarmos a consciência , procurando a ressurreição dia após dia, pedindo a ajuda de Jesus e prometendo-lhe nosso empenho.

Não se desespere por falta alguma, não considere nada como insuperável, porque se Jesus ressuscitou um morto em decomposição, Ele pode, Ele quer fazer esse milagre também conosco, aqui , agora. E digo mais: se fossemos capazes de ver o milagre que se opera na alma quando Deus perdoa, nós nos espantaríamos muito mais do que se víssemos a ressurreição de Lázaro.

Gostaria de terminar citando as palavras da leitura do profeta Ezequiel: é Deus quem vos fala: ‘vou abrir vossas sepulturas e vos conduzirei à terra de Israel. Quando eu tiver aberto as vossas sepulturas e vos tiver feito sair para a luz, sabereis que eu sou o Senhor’.

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 10 de abril de 2011.
Liturgia da Palavra
Primeira Leitura: Profecia de Ezequiel (Ez 37,12-14)
Salmo: [Sl 129(130)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Romanos (Rm 8,8-11)
Evangelho: (Jo 11,1-45)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com

Homilia do 4º Domingo da Quaresma

Transcrição da Homilia do 4º Domingo da Quaresma

Se fôsseis cegos não teríeis culpa.

Muita gente se considera sem necessidade de salvação. Afinal de contas, salvação de quê? Eu me basto, eu sou suficiente. Tudo o que tenho fui eu que consegui e com muita dificuldade, eu tenho minha liberdade, eu decido minha vida, eu sei o que é bom para mim e assim por diante...

E se alguém diz: “escuta, você não está vendo direito, pede a Deus que mostre, aproxime-se da luz para enxergar um pouco melhor’. A pessoa diz: “não preciso, eu vejo o que é bom para mim.”


Então, se fôsseis cegos não terias culpa, mas como dizeis “nós vemos”, ou seja, como recusais a admitir a cegueira, como vos recusais a aproximar-vos da Luz para enxergar melhor, como permaneceis voluntariamente endurecidos na cegueira, o vosso pecado permanece. E aí o povo forjou aquele célebre ditado: ”o pior cego é o que não quer ver”. Certamente é um resumo adequado dessas palavras de Jesus.

Eu vim a este mundo, diz o Senhor, exercer um julgamento, inverter as coisas, para que quem não enxerga passe a ver e quem vê ou acha que vê fique cego, permaneça na cegueira. Aqueles que se julgam sábios são os que menos sabedoria têm. Os que se julgam livres muitas vezes são os menos livres, são os mais escravos de si mesmo, das suas paixões. Aqueles que se julgam maduros, independentes são às vezes os mais carentes de maturidade, mais dependentes de coisas tais que um homem ou uma mulher de Deus não se deixaria prender por elas.

É preciso uma condição para receber a cura, ou seja, a salvação: reconhecer a própria necessidade, a própria fraqueza, a própria cegueira.

Imaginem um cego de nascença num lugar onde todos fossem cegos de nascença: ele nem sequer saberia que era cego. É mais ou menos o nosso caso, o caso do mundo onde nos encontramos.

Diz-se, outro ditado “em terra de cego quem tem olho é rei”, mas algum espírito ácido e perspicaz já modificou esse ditado e o propôs diferente dizendo: “em terra de cego quem tem olho é caolha”. E vai dizer que está vendo alguma coisa para os que não vêem... Ele vai apanhar, dirão que está inventado, que não existe aquilo...

O cristão é alguém que, supõe-se, recebeu a luz de Cristo, é iluminado. O Batismo na Igreja antiga era chamado com muitos nomes e um deles era iluminação. O cristão foi iluminado. Se ele vive na luz de Deus, ele enxerga o que os outros não vêem. E como ele vive de acordo com o que ele enxerga e que os outros não vêem então ele passa por louco. Ele é o caolho na terra de cego, ele é o louco, ele é o insensato. Vejam que aquele que fora cego e mendigo passa a tentar abrir os olhos dos fariseus: Vós não sabeis de onde ele é, muito bem! Mas abriu-me os olhos: Deus não escuta os ímpios, mas quem faz a sua vontade. Quereis ser discípulos dele? Revoltam-se os mestres e dizem: tu nos estás ensinando, como ousas, tu que nascestes no pecado? E assim a vossa cegueira permanece.

Existe uma reação, uma repulsa à mensagem cristã, à pessoa de Jesus Cristo, ao Evangelho e às suas exigências. Nós devemos enfrentar esta repulsa, não devemos ter medo. Vejam que os pais do ex-cego se encolheram com medo etc. Mas ele foi corajoso, ele foi até o fim. E com isso, mereceu ser curado de um segundo nível da cegueira. No primeiro nível, o nível físico, fora curado e depois ele encontra Jesus e vê Jesus (porque antes não tinha visto Jesus). Jesus se apresenta como o Messias. Declara: Sou eu que estou falando contigo. Ele se ajoelha e diz : eu creio Senhor. Nesse momento o cego passa a enxergar propriamente, ou seja nesse momento ele deixa de ser cego por completo, no momento que ele enxerga quem é Jesus para ele. Eis que os que rejeitam Jesus, rejeitam apesar das evidências: não querem ver o milagre. Permanecem na escuridão.

Muitas vezes as pessoas rejeitam o Evangelho e tudo aquilo que ele comporta, rejeitam a religião, rejeitam a Igreja, rejeitam o cristianismo, por quê? Porque já têm idéias preconcebidas, se aferram a essas idéias e não querem sequer colocar em questão aquilo que para eles já é verdade. Eles decidiram. Há pessoas que, por simpatia ou por antipatia, aceitam ou rejeitam as coisas. Se uma coisa me desagrada, ele é ruim; se uma coisa me agrada ela é boa. Quem disse que é assim? Que lógica é essa? Se me agrada é bom, se não me agrada é ruim. Quem disse? E assim nós rejeitamos ou corremos o risco de rejeitar muitas coisas que Deus quer e abraçar coisas que Deus abomina, só porque nos agradam ou nos desagradam. Eis a cegueira, eis a atitude dos fariseus.

Nós vimos na primeira leitura um relato do profeta Samuel que recebe de Deus a instrução de ir à casa de Jessé e ungir, consagrar como rei de Israel um dos seus sete filhos, porque Deus havia rejeitado o rei Saul, consagrado precedentemente pelo mesmo Samuel. Agora Deus estava providenciando outro rei. Samuel chega, Jessé o convida para sentar-se à mesa, mas ele diz que não enquanto não chegarem todos os seus filhos. Chegam seis e ele fica muito impressionado com a aparência do primeiro, do mais velho: uma bela aparência, um porte que o destaca dos irmãos e, pensa , deve ser esse, esse parece um rei... Mas Deus imediatamente diz ao coração do profeta: não é nada disso! Tu estás olhando a aparência, mas Deus vê o coração. E aí vão chegando os filhos... e nada e nada. Então Samuel pergunta: estão todos aqui? Não, diz o pai, o mais novo está cuidando das ovelhas e das cabras no campo. Manda chamá-lo, diz o profeta! E quando chega Davi, descrito aqui com traços infantis e delicados, Deus diz: É esse! É o menor, é o menos tido em consideração, é o sem importância. É aquele que podia esperar para almoçar depois, é ele.

Então é Deus quem faz ver a realidade, mais profunda. O profeta era um homem espiritual, era um homem de Deus, era um homem santo. Estava acostumado com as coisas de Deus, mas também ele se deixou levar pelas aparências. Teria escolhido outro que não era o escolhido de Deus. Não seria capaz de reconhecer o escolhido do Senhor por si próprio. Até o profeta! Nós então, se não formos iluminados por Deus também somos incapazes de reconhecer o quer que seja a um palmo do nosso nariz. Se não formos iluminados por Deus, seremos enganados pela nossa cegueira seguindo as aparências, seguindo as preferências do nosso coração tão doente, tão viciado. É preciso que Deus mostre.

Então, diante de Jesus, coloquemo-nos hoje humildemente, admitindo: “Senhor, ainda que eu não perceba, sei que tenho muita cegueira a ser curada. Cura o meu coração Senhor, faz-me enxergar o que queres que eu veja. Faz-me enxergar o que queres que eu faça, faz-me enxergar o que queres que eu seja, faz-me ver as coisas à Tua luz, faz-me julgar as coisas à tua luz”.

Termino com um ressalto às palavras do Apóstolo Paulo na Carta aos Efésios, que conclui bem e aplica à nossa vida todas essas reflexões: Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da Luz não vos associeis às obras das trevas que não levam a nada, mas desmarascarais-as. O que eles fazem em segredo é vergonhoso até dizê-lo. Desperta tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará.

Proferida pelo padre Sérgio Muniz em 03 de abril de 2011.
Liturgia da Palavra:
Primeira Leitura: Primeiro Livro de Samuel: (1Sm 16,1b6-7.10-13a)
Salmo: [Sl 22(23)]
Segunda Leitura: Carta de São Paulo aos Efésios (Ef 5,8-14)
Evangelho: João (9,1-41)
Nota: Esta e outras Homilias anteriores no blog: www.verbumvitae.com